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Relicário – por Zé Beto Maciel

por www.guata.com.br

Siga em frente, a sua sina, sua lida e não se preocupe que a vida apronta e sempre vai aprontar com gente como você, como eu, que não para satisfeita no seu canto e acredita que ainda é cedo e tal como a música que ainda tem o próprio tempo.

Deve ser um grande e terrível engano, mas incomoda, apavora e se traduz em fascínio, desencanto, alegrias da alma, urticárias no corpo e por todas aquelas doenças somatizadas que deságuam num desamparo sem fim. Enlouqueço, me deprimo, adormeço como um fissurado a procura de uma droga, de uma viagem lisérgica que guarda o mundo dentro de mim.

Trecho da crônica “Relicário”, de Zé Beto Maciel. Leia a seguir a sua íntegra.

Relicário

Minh’alma de sonhar-te, anda perdida – Florbela Espanca –

Aonde você vai agora depois de tantos anos?

Vai se reinventar, acreditar em outros sonhos, tocar outros projetos e enfrentar outros idos, outros amos.

Siga em frente, a sua sina, sua lida e não se preocupe que a vida apronta e sempre vai aprontar com gente como você, como eu, que não para satisfeita no seu canto e acredita que ainda é cedo e tal como a música que ainda tem o próprio tempo.

Deve ser um grande e terrível engano, mas incomoda, apavora e se traduz em fascínio, desencanto, alegrias da alma, urticárias no corpo e por todas aquelas doenças somatizadas que deságuam num desamparo sem fim. Enlouqueço, me deprimo, adormeço como um fissurado a procura de uma droga, de uma viagem lisérgica que guarda o mundo dentro de mim.

Eu choro e acabo rindo e já te disse isso. De onde viemos e como fomos criados, como que ainda estamos aqui? Todos os seis. É como um filme, um drama de época, um conto de uma família em plena depressão americana. Lembra quando nós, todos, pequeninos, cortávamos o tempo com um machado, para a chuva não vir e ir ao cinema?

Eu nem sabia ler e você me dizia que quando leão da Metro rugia uma vez, o filme era ruim, dois rugidos anunciavam um filme bom, três rugidos então, excelente. Você sabia muito bem que o leão nunca rugia três vezes. Eu acreditei.

Não faz mal. Eu acreditei em tantas coisas e cantava as músicas de Gianni Morandi e me surpreendia porque os índios eram tão ruins, os mocinhos tão bons, os árabes batalhavam com as aquelas espadas curvas e as guardas romanas se degladiavam e eu nem conseguia diferenciar quem estava ganhando entre as capas vermelhas e as capas brancas.

Vinte anos depois era eu que levava o filho pequeno a um cinema para assistir Dersu Uzala e narrava os diálogos para ele que insistia “e agora pai?…e agora pai?” para meu desconforto da platéia irritada.

Tudo isso povoa sonhos e pesadelos de febres renitentes. Lembro do pé de goiaba, da guavirova, das mandarinas e dos pés de laranjas. Da maestria do pai que descascava as laranjas como só ele. Tempos atrás, deitei na cama como o meu filho e pedi para ele anotar quanto pés de frutas tinham no nosso terreiro. Passou de 30, incluindo as de época.

Lembro da Sarita, a papagaia que não falava nem com os goles de pinga que o pai dava. E os cachorros? Tinha um Bob, não tinha? As gatas que pariam entre os entulhos de madeira e os gatinhos que se criavam ariscos. Quantos arranhões.

De uma coisa, tínhamos certeza: a Confiança não era só a melhor botadeira como a galinha que melhor cuidava dos pintinhos. Era um corridão atrás do outro. Quando os ovos eclodiam lá ia a mãe fazer lá não sei o que com o bico dos pintinhos. Acho que era para tirar a casca do ovo que ficava grudada no bico.

É a nossa história e eu sempre digo que a literatura me salvou, que a minha primeira cultura é fílmica e que a escola era a expiação necessária da vergonha da casa em que morávamos, da criação dos nossos pais e da nossa profunda ignorância.

Quanta besteira por falta de amor, ternura e compreensão. Faltou quase tudo, pais, tios, avós, amigos e referências mais saudáveis. Talvez a abstração foi a única alternativa para seguir andando, rompendo, valendo-se do próprio desconforto e dos conflitos.

Isso marcou como tinha que ser marcado, feito fogo, ferro em brasa, feridas e cicatrizes carcomidas nos recônditos das almas. É, provavelmente, razões do desajuste e sofreguidão. E é por isso que te digo: vamos em frente. Precisamos desta invenção como as cigarras da infância precisavam da primavera para cantar, como um bêbado que precisa de mais uma dose e o fumante de mais um cigarro. Como um penitente que se flagela ao purgar o pecado.

Os olhos são outros, a leitura é piedosa, firme, sensível e assertiva. Já entendemos o que se passou, deploramos as muletas, criamos os filhos e pulamos uma geração. O que sofri e o que errei são as pontes de outrem e já que está tudo preparado para as mudanças, voltemos aos sonhos de criança.

Saudades do meu passado e de um futuro que nunca tive.

Vivo a sonhar.

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