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Desta vez não foi o FHC

Desta vez não foi o FHC

Fernando Tibúrcio

A arriscada estratégia do Palácio do Planalto de culpar o governo Fernando Henrique Cardoso pelo mar sem fim de corrupção que hoje afoga a Petrobrás foi recebida pelo mundo virtual com criatividade e um certo sarcasmo ao estilo do semanário francês Charlie Hebdo. Proliferam memes na Internet, como o do simpático cachorrinho que revira o lixo e disfarça a sua traquinagem pendurando no pescoço um cartaz com os dizeres “Foi o FHC”. Ou o de um dinossauro bradando uma palavra impublicável – e, é claro, o nome de FHC – ao ver cair o meteoro incandescente que o condenaria junto com os seus semelhantes à extinção.

Quem sabe por estar cansado – assim como tantos brasileiros – dessa coisa de dividir o país entre nós e eles, o ex-presidente não economizou palavras na nota que redigiu na última sexta-feira. Para FHC, a presidente Dilma Rousseff deve parar de “encobrir as suas responsabilidades”. Mais, deve “fazer um exame de consciência e assumir que foi pelo menos descuidada ao recusar a compra da refinaria de Pasadena”.

O leitor menos avisado poderia imaginar num primeiro momento que a resposta dura tenha sido uma reação natural, quase instintiva. Antes que alguém diga que FHC se apressou e falou pelos cotovelos ou que fez uso da velha retórica que muitas vezes entremeia o discurso político, é preciso analisar com atenção fatos e documentos.

Uma nota divulgada em 19/3/2014 pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República em resposta ao jornal O Estado de S. Paulo informou que “A aquisição pela Petrobras de 50% das ações da Refinaria de Pasadena foi autorizada pelo Conselho de Administração, em 03.02.2006, com base em Resumo Executivo elaborado pelo Diretor da Área Internacional. Posteriormente, soube-se que tal resumo era técnica e juridicamente falho, pois omitia qualquer referência às cláusulas Marlim e de Put Option que integravam o contrato, que, se conhecidas, seguramente não seriam aprovadas pelo Conselho”. Logo a seguir, a nota diz que “a autorização para a compra dos primeiros 50% havia sido feita com base em informações incompletas”.

É difícil, no entanto, imaginar que se ocultou do Conselho de Administração da Petrobrás a existência das cláusulas “put option” e “Marlim”, que obrigavam a Petrobrás a comprar a participação da Astra – a sua sócia no negócio – e a garantir a esta uma rentabilidade mínima anual. No que diz respeito à cláusula “put option”, várias são as menções feitas a ela no Annual Report 2006 da Compagnie Nationale à Portafeuille – a controladora da Astra –, publicado em abril de 2007. Na página 67 consta textualmente a faculdade da Petrobrás exercer a “put option”. Na página 108 está expresso o direito da Petrobrás de executar certas decisões e o da Astra de exercer o direito de vender a sua participação em determinadas circunstâncias. Portanto, não parece crível que – ainda conforme a nota da Secom – só “Em 03.03.2008, a Diretoria Executiva levou ao conhecimento do Conselho de Administração a proposta de compra das ações remanescentes da Refinaria de Pasadena, em decorrência da aplicação da Cláusula de Put Option”.

O que a nota da Secom esqueceu de mencionar foi que, em termos práticos, o efetivo exercício da opção de venda da participação da Astra na joint venture com a Petrobrás começou a ser construído num acordo firmado entre a Petrobras America e a Astra Oil Trading em 5/12/2007, acordo este que se materializou através de uma letter agreement. Não faz sentido imaginar que um acordo dessa magnitude, onde a Petrobrás se comprometia a comprar os 50% restantes da refinaria de Pasadena por setecentos milhões de dólares, tenha sido ocultado do Conselho de Administração da empresa. Isso porque um ano e meio antes da New York International Chamber of Arbitration (a Câmara Internacional de Arbitragem de Nova Iorque) decidir, em 10/4/2009, que a Petrobrás teria de pagar a Astra o valor de US$638,925,053 – ao qual seriam acrescidos juros de 5 % ao ano –, a própria Petrobrás já se comprometera a comprar os 50 % restantes da refinaria de Pasadena pelos tais setecentos milhões de dólares. [Appeal from the United States District Court for the Southern District of Texas USDC No. 4:08-CV-2072, pp. 2 e 3].

Por outro lado, como informa a nota da Secom, faz sentido acreditar que na reunião do Conselho de Administração da Petrobrás que autorizou a compra da refinaria de Pasadena – anunciada em 3/2/2006 em comunicado divulgado pela própria empresa – provavelmente não foram discutidas as cláusulas “put option” e “Marlim”. Essas cláusulas devem ter sido colocadas à mesa – o que é lógico – no período de sete meses compreendido entre a citada deliberação do Conselho de Administração e a assinatura em 1/9/2006 do contrato de compra da refinaria de Pasadena. Seja como for, dado que foi assumida uma obrigação milionária, o correto seria que a minuta do contrato de compra e venda da refinaria fosse levada à discussão em uma nova reunião do Conselho, antes de ser liberada para a assinatura.

Se déssemos ouvidos à tese que foi sustentada na nota da Secom, de que o Conselho de Administração da Petrobrás só tomou de fato conhecimento da existência da cláusula “put option” em 3/3/2008, teríamos que admitir a ocorrência improvável e sucessiva de três eventos: que nada foi informado ao Conselho quanto à existência das cláusulas “put option” e “Marlim” durante a reunião que aprovou a compra da refinaria, em fevereiro de 2006; que mais uma vez não chegou a informação ao Conselho de que as referidas cláusulas foram inseridas na minuta do contrato de compra e venda da refinaria, por ocasião da sua assinatura em 1/9/2006; e que finalmente o Conselho não ficou sabendo que a Petrobrás fizera um compromisso de setecentos milhões de dólares, em 5/12/2007 (quatro meses antes, portanto, da reunião de 3/3/2008 a que se refere a nota da Secom).

Admitir essa quase inacreditável sucessão de eventos nos levaria forçosamente a reconhecer que os membros à época do Conselho de Administração da Petrobrás, assim como os principais executivos da empresa, foram muito bem remunerados para deixar passar despercebido fatos que saltavam aos olhos. Vale lembrar que, somadas as compensações, a remuneração do alto comando da empresa alcançava algo em torno de três milhões de dólares por ano, conforme a própria Petrobrás relatou à United States Securities and Exchange Comission (a Comissão de Títulos e Câmbio dos Estados Unidos), ao fim do ano fiscal de 2006. [Relatório anual apresentado pela Petrobrás à United States Securities and Exchange Comission, p. 131].

Em resumo, aceitar a versão de que o Conselho de Administração passou batido em três ocasiões – é importante ressaltar que certas informações já eram conhecidas do mercado, como a informação relativa à cláusula “put option”, que foi inserida no relatório anual de 2006 da controladora da Astra – seria o mesmo que admitir que a gestão da Petrobrás chegou ao fundo de um poço que parece não ter fundo (algo que resulta óbvio hoje, já que, esquecendo por um momento Pasadena, nem mesmo a bolha gigantesca prestes a estourar que se tornou o orçamento da refinaria de Abreu e Lima foi capaz de alertar os gestores da petroleira ou de acender uma luz vermelha na sala da Presidência da República). Em outras palavras, que Dilma Rousseff, como presidente à época do Conselho de Administração da Petrobrás, foi sim “pelo menos descuidada”, tomando emprestadas as palavras de Fernando Henrique Cardoso.

A frase de efeito da qual me apropriei, que fecha o parágrafo anterior, bem serviria de grand finale para o presente artigo. Entretanto, para ser justo com os meus leitores, sinto-me na obrigação de fazer um último comentário: o descuido de Dilma Rousseff não leva a constatação automática de que a suprema mandatária do país seja corrupta ou mesmo de que seja da sua índole a conivência com a corrupção (lembremo-nos que foi a presidente que botou lenha na fogueira da crise ao tomar a iniciativa de exigir da Secom a nota em resposta à traiçoeira pergunta feita pela perspicaz jornalista Andreza Matais). Mas o isolamento a que se autoimpôs, talvez só comparável à solidão dos últimos dias de Getúlio Vargas, vem minando-lhe as forças para combatê-la.

Seja como for, a corrupção despojou Dilma das vestes de primeiro magistrado da nação e só os poucos puxa-sacos de plantão e um restolho do que sobrou da sua frágil base de apoio continuam fingindo não enxergar o óbvio. Assim como no conto de fadas de Hans Christian Andersen, a multidão deu o grito de que o rei estava nu. Porém, exatamente como ocorreu na história infantil, era tarde demais. Também aqui, no mundo real, o rei apenas levantou a cabeça e fez que não escutou.

Fernando Tibúrcio Peña é advogado.

Política, economia, cultura e bom humor no blog do Paraná.