Gabriel Manzano
de O Estado de S.Paulo
O Carnaval já passou, mas bem que as 71 milhões de eleitoras brasileiras podiam sair nesta sexta-feira, 24, às ruas comemorando. Nesta data faz 80 anos que o voto feminino entrou em cena – uma gentileza que fez à mulher brasileira o presidente Getúlio Vargas, ainda não ditador, a 24 de fevereiro de 1932, quando mandou publicar o primeiro Código Eleitoral do Brasil. Se hoje as mulheres são maioria no eleitorado (52%), se elas dominam 24 dos 27 Estados brasileiros, se têm no Palácio do Planalto o mais poderoso dos 136 milhões de votos, que agradeçam ao caudilho gaúcho que, lá atrás, abriu-lhes as portas da política.
Na mesma penada o código trouxe também o voto secreto – um definitivo adeus aos currais eleitorais da Velha República, controlados por velhos coronéis. No pacote, a Justiça eleitoral e o voto classista, que permitia às profissões elegerem seus representantes no Congresso. O cidadão começava a respirar uma pequena amostra do Brasil moderno.
Mas a história, é bom lembrar, não se faz de datas. Quatro meses depois o mesmo Getúlio sufocou a Revolução Constitucionalista de São Paulo, que pedia eleições diretas para presidente. Em 1934 se fez reeleger presidente pelo voto indireto de uma assembléia. Em 1937 liquidou todas as leis e implantou uma ditadura de oito anos. Mas o precedente estava aberto. Assim, o voto secreto, o feminino e a Justiça eleitoral voltaram à cena, sem traumas, na nova Constituição de 1946.
“O código foi uma concessão tardia de Vargas ao tenentismo”, explica o cientista político Fábio Wanderley Reis, da Universidade Federal de Minas Gerais. “Mas foi um passo de enorme importância para modernizar o Brasil”. Com ele começou “uma persistente incorporação de imensas parcelas do povo ao processo de escolha dos dirigentes”. Nesta entrevista, Wanderley Reis avalia essas oito décadas e deixa a advertência: “Tivemos grandes progressos, como o acesso à educação. Mas falta a incorporação sócio-cultural. Falta fazer a educação funcionar, para termos cidadãos capazes de votar judiciosamente”.
Qual o impacto, 80 anos depois, do Código Eleitoral de 1932?
Ele foi de uma importância enorme na vida brasileira. Ao mesmo tempo, foi um fruto das contradições da experiência getulista. Com o voto secreto, o direito de voto às mulheres e a Justiça Eleitoral, Vargas abriu caminhos para modernizar o País. Passadas oito décadas, essa Justiça amadureceu. Hoje os 190 milhões de eleitores podem usufruir de um sistema fácil, moderno, transparente e democrático.
O que explica essa iniciativa democrática de Getúlio Vargas?
De certo modo, foi uma concessão tardia ao tenentismo. Havia no movimento tenentista dos anos 20 ideais de modernização do Brasil e Getúlio, em sua estratégia de poder, decidiu incorporar algumas aspirações desse grupo. Um moderno sistema eleitoral era uma delas.
Todo esse avanço pouco ajudou na participação dos cidadãos na política. Por quê?
Eu mitigaria um pouco esse contraste. Claro que há erros e problemas, mas o que vimos ao longo dessa história foi a incorporação de imensas parcelas do povo ao processo de escolha dos dirigentes. Nas últimas décadas, o eleitorado cresceu num ritmo muito superior ao da própria população. Os atuais 135,8 milhões de eleitores representam 72% da população. Esse imenso eleitorado afeta bastante a ação dos políticos, pesa em suas estratégias. O resultado é uma nitidez bem maior na correlação de forças, entre lideranças políticas e eleitores.
Pode dar exemplos disso?
Os confrontos entre Lula e Alckmin em 2006, ou de Serra e Dilma em 2010, mostram o forte impacto da opinião do eleitorado, que precisava ser conhecido e conquistado. Assistimos naquelas campanhas a um enfrentamento político no País real. Há enormes problemas com os partidos, mas eles hoje não sobrevivem se não souberem como tratar as novas classes em ascensão. Claro que há muito a avançar, ainda.
O que há para avançar?
Refiro-me a problemas graves, como essa judicialização da política e a politização da Justiça na vida brasileira. Há questões doutrinárias a conciliar. Tivemos o maluco episódio da verticalização, que ignorava o Brasil real e acabou derrubada pelo Supremo. Mas, só como comparação: não temos cenas como a da Venezuela, onde a Justiça eleitoral tenta se apossar de votos das prévias da oposição, certamente para ter uma lista de inimigos do governo autoritário.
Fala-se, às vezes, em acabar com o voto obrigatório. O sr. é a favor disso?
Sou a favor de manter a obrigatoriedade do voto. Minha opinião é que ele não deve ser entendido como um direito, e sim como um dever. Já ficou claro, em tantas experiências mundo afora, que há um componente econômico no comportamento do eleitor. Os pobres, podendo, tendem a abandonar esse direito, e se caminha para uma elitização das eleições. No Brasil, se deixarem o pobre não vota mais – e aí teremos mais exclusão.
Muitos eleitores se afastam por sentir que políticos não são sérios, nunca são punidos, que os partidos fazem o que querem…
Sim, e por isso se arrastam tantas discussões, como a da reforma política. Acredito que melhoraria muito se fosse introduzido o voto em lista e no partido, que simplificaria o controle da sistemática eleitoral. Mas é preciso também criar partidos com consistência, evitar que eles sejam controlados por uma pequena oligarquia.
Não há sinais de que a classe política queira mudar as regras atuais, que ela própria criou.
Já aprendemos também que não se muda um País só mudando dispositivos legais. Isso traz ao debate outro lado da questão. É a urgência de se avançar na educação, na incorporação sócio-cultural, além da econômica. Tivemos grandes progressos no acesso à educação, mas agora falta fazê-la funcionar, para termos cidadãos capazes de votar judiciosamente.
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