Tânia Fusco
Ter visto Pelé em campo é medida de orgulho – e velhice, imagino – do meu neto de 14 anos, que é apaixonado por futebol. Se viu e lembra, recebe um ual! E miles de perguntas.
Pois eu vi o Pelé jogar. E mais muitas partidas do jogo brasileiro.
Não vi o Getúlio em campo, mas soube sobre ele enquanto crescia e o Sul de Minas era cortado pela Rodovia Fernão Dias, que ligou São Paulo a Belo Horizonte, fez subir o preço das terras e das coisas todas por lá.
Estradas e progresso eram jogo de JK, mineiro presidente, risonho, que fazia tudo parecer fácil – até fazer uma capital em cinco anos. Fez e passou a bola prum cara que, de vassoura em punho, prometia varrer do país inflação, carestia e corrupção.
Era o Jânio. Feioso. Em sete meses de governo, condecorou Che Guevara – lindo barbudo, herói da revolução cubana, primeiro perigoso comunista que me foi apresentado – de longe, é claro. Só por foto.
Jânio criou um traje especial para encarar a seca e o calor de Brasília – inspirado em roupa para safari, meio um uniforme militar estilizado, de mangas curtas, blusão com quatro bolsos e cinto. Calça comprida para homens, saia para as mulheres. Era um uniforme de trabalho de uso facultativo. Mas, para dar exemplo, ele próprio usava.
De slack, proibiu biquíni nas praias e maiôs cavados nos desfiles de misses. Os concursos de beleza e as misses paravam o país. Por decreto, proibiu corridas de cavalos no meio da semana e brigas de galos. Feito isso tudo, bilhetou uma renuncia dizendo-se premido por umas tais forças ocultas nunca desocultadas.
Pelé seguia em campo, cada vez melhor. E já tínhamos uma Copa do Mundo na mochila. Comecei a ver crises. As freiras nos devolveram mais cedo pra casa porque, se o Jango assumisse, ia rolar desgraça. Capaz dos comunistas aparecerem no colégio pra comer criancinhas e as freirinhas junto.
Jango era o vice do Jânio. Diziam, um perigoso comunista, rico e fazendeiro, herdado do Getúlio. O país tenso. Grudado no rádio. A criançada curtindo os dias de folga. As freiras rezando terço pra nos livrar do inferno comunista.
Jango vinha da China devagar o suficiente para as forças ocultas costurarem acerto para dar-lhe o cargo, mas não o poder.
Pelé em campo. Jango no palácio. O Congresso no comando. Era o parlamentarismo.
As freiras piedosas seguiam rezando para afastar o perigo do comunismo, que viria de russos e cubanos. O parlamentarismo desandou. E um plebiscito devolveu o presidencialismo ao Jango.
Pelé seguia arrasando em campo. Trouxemos outro caneco de Copa pra casa. Jango driblava as crises, tentando passes para reformas de base – e o monstro sem cabeça: a reforma agrária.
Deu ruim. Golpe militar, batizado de revolução. Sem batalhas. Com armas postas e navios americanos cercando praias. De novo, as freiras mandaram as meninas pra casa até que o perigo comunista passasse.
Foram 20 anos com cinco generais presidentes caçando comunistas – aí cabendo todo e qualquer cidadão/cidadã que ousasse oposição ao que chamavam de Regime. Tempos de violência e vilania. Um sem número de torturados, mortos, desaparecidos.
JK, o presidente risonho e querido, foi caçado e cassado – perdeu os direitos políticos. Humilhado. Acusado de corrupção, respondeu a processos. Por horas, em pé, foi interrogado por um capitão. Nada provado, seguiu perseguido. A Justiça, então, não praticava justiça. Vivia medrosa, subalterna.
Jango morreu no exílio. Outros brasileiros ilustres também.
Enquanto Pelé jogava, crescíamos falando de lado e olhando pro chão. Sentindo medo. Do vizinho, do porteiro, de carros pretos, de homens de farda, da polícia – mesmo sem ser ladrão ou bandido.
Pelé jogou muito na Copa de 70, no México. A seleção canarinho trouxe o tri pra casa. Mas a bola não rolava macia por aqui. Pensar era coisa muito perigosa. Falar mais ainda. Reagir era morte certa.
Deu um trabalho danado escapar do medo e do Regime. Pelé nem jogava mais. Deixou saudades e freirinhas, agora estilizadas, ainda rezando e temendo comunismo e comunistas.
Você viu o Pelé jogar?
Tânia Fusco é jornalista, mineira, observadora, curiosa, risonha e palpiteira, mãe de três filhos, avó de dois netos. Vive em Brasília. Às terças escreve sobre comportamentos e coisinhas do cotidiano – relevantes ou nem tanto
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