Um trabalhador preso ilegalmente, um trabalhador assassinado brutal e covardemente: uma história triste protagonizada pelo juiz Edgar Lippmann Júnior
1989. Foz do Iguaçu. A cidade vive intensa mobilização sindical e social. Depois de exaustivas e infrutíferas negociações com os patrões, os motoristas e cobradores do transporte coletivo urbano entram em greve. Em seguida, a cidade é surpreendida com a prisão do presidente do sindicato, decretada por um juiz federal, com base na inusitada alegação de crime contra a organização do trabalho. Fato inédito após o retorno do país à democracia, a prisão de um presidente de sindicato durante uma greve, quando investido de poderes para negociar com os patrões, revoltou não apenas a categoria dos motoristas e cobradores, como os demais trabalhadores e as forças democráticas da cidade. Os protestos eram generalizados e a tensão política crescente.
O advogado do sindicato vai ao juiz federal protestar contra a prisão e pedir a sua revogação. Na reunião com o juiz, o advogado faz-lhe ver que a prisão do presidente do sindicato e líder inconteste dos trabalhadores rodoviários no curso do movimento grevista, a par de ilegal, representava uma intervenção indevida da Justiça Federal num conflito trabalhista em favor de um dos lados, o lado mais forte, dos empresários, desequilibrando artificialmente a disputa. À evidência de que o juiz não determinaria a soltura do líder sindical antes de findo o movimento, o advogado acrescentou que a prisão traria prejuízos para centenas de trabalhadores e suas famílias e que a soltura do líder sindical depois de encerrado a greve não reporia tais prejuízos. O juiz, então, respondeu que havia decretado a prisão “para atender à solicitação da sociedade”, ao que o advogado perguntou-lhe a que parcela da sociedade estava ele precisamente atendendo com a decretação ilegal da prisão de um líder e representante dos trabalhadores. Sua resposta, um sorriso cínico, foi a confissão de que tinha a clara consciência das motivações políticas do seu ato e de que classes sociais e interesses econômicos estava ele a atender com a prisão ilegal que decretara.
O advogado, então, alertou-lhe para as possíveis conseqüências de radicalização e descontrole do movimento grevista em razão prisão do principal líder e negociador sindical e em especial para os riscos de violência contra os trabalhadores por parte de milícias patronais que já circulavam pela cidade. Nada sensibilizou o juiz federal, que estava firmemente determinado em prestar um relevante serviço aos ricos e poderosos empresários do transporte coletivo, alguns dos quais donos de jornais e hotéis na cidade, usando a toga para calar a voz do mais destemido dirigente sindical da cidade.
Não demorou muito para que os vaticínios do advogado se realizassem de forma terrível: milícia armada da maior empresa de transporte coletivo da cidade, em seguida a um piquete, perseguiu e assassinou um jovem e corajoso trabalhador, José Mauro Ferreira. A cidade entrou em comoção. O advogado voltou ao gabinete do juiz federal para reiterar o pedido de soltura do líder sindical, o que foi novamente negado. Como último recurso para evitar uma conflagração na sede da Polícia Federal, onde o dirigente estava preso e para onde os trabalhadores pretendiam dirigir-se levando o caixão do trabalhador assassinado, o advogado solicitou que, como ato humanitário, o juiz concordasse que o presidente do sindicato pudesse acompanhar as últimas homenagens ao trabalhador assassinado, seu liderado e amigo. O advogado alertou ao juiz que a recusa à solicitação de natureza humanitária poderia ter conseqüências imprevisíveis diante da revolta crescente e já incontrolável dos trabalhadores. O juiz disse que concordaria desde que o advogado empenhasse sua palavra de que ao término do sepultamento o presidente do sindicato voltaria pacificamente à prisão.
O féretro envolveu uma multidão. Milhares de pessoas, trabalhadores na sua maioria, percorreram sob o sol inclemente a Avenida Brasil, a principal da cidade, até a sede da Polícia Federal. Não se diziam palavras de ordem. Era uma passeata triste e silenciosa, que não carregava apenas o caixão do jovem guerreiro Zé Mauro, mas a indignação e a revolta ancestral dos povos oprimidos. Não era preciso gritar palavras de revolta, bastava o olhar dos que estavam ali para prestar homenagens a mais um trabalhador brasileiro assassinado pela brutalidade da ganância irrefreável. A revolta no olhar de todos pela situação dantesca: o assassinato de Zé Mauro, cujos autores estavam soltos, e a prisão do presidente do sindicato decretada pelo juiz federal tão prestativo aos ricos e poderosos. Quando o cortejo fúnebre estava a poucas quadras da sede da Polícia Federal, o líder sindical saiu da prisão, acompanhado pelo seu advogado. Foi um momento marcante na história de Foz do Iguaçu. É tão inesquecível quanto indescritível a emoção generalizada com que se deu o encontro entre o trabalhador preso ilegalmente pelo juiz federal e o trabalhador morto pela barbárie que se seguiu à prisão ilegal e irresponsável. Centenas choraram juntos, ali na rua, o choro dos inconformados, o choro da indignação e da revolta.
O sempre corajoso Bispo Dom Olívio Fazza abriu a Catedral da cidade para a multidão acompanhar o ofício dos mortos. Em seguida ao sepultamento, o líder sindical acompanhado por seu advogado retornou à sede da Polícia Federal para se deixar novamente encarcerar. Dali o advogado seguiu para o Tribunal Regional Federal em Porto Alegre, onde, sem qualquer dificuldade, conseguiu mediante hábeas corpus a imediata anulação da prisão ilegal e a soltura do dirigente sindical.
Nomes aos bois. O líder sindical é Dilto Vitorassi, posteriormente eleito vereador, Presidente da Câmara Municipal, Vice-Prefeito, deputado federal. O juiz federal que o prendeu para calar a voz dos trabalhadores é Edgar Lippman Junior, hoje Juiz do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Casa de tantos magistrados dignos e ilustres, de onde continua a tentar calar a voz dos trabalhadores, do povo e de seus representantes mais destemidos, como o governador Roberto Requião. Não se pode acusá-lo de incoerência ou falta de perseverança. Sua ação mais recente, quase vinte anos depois dos trágicos acontecimentos de Foz do Iguaçu, é a censura prévia à TV Educativa do Paraná, objeto de veemente repúdio estadual, nacional e internacional: ABI-Associação Brasileira de Imprensa, Fenaj-Federação Nacional dos Jornalistas, a organização francesa RSF-Repórteres sem Fronteiras, AERP-Associação das Rádios e Televisão do Paraná, ADI-Associação dos Jornais Diários do Interior do Paraná, e, ademais, todas as forças democráticas não anestesiadas pelo jogo pequeno da disputa eleitoral no Paraná. O então advogado do sindicato é Samuel Gomes, atualmente Diretor Presidente da FERROESTE – Estrada de Ferro Paraná Oeste S/A, empresa do Estado do Paraná, a única operadora ferroviária pública do Brasil.
Este o registro que não se poderia deixar de fazer à história do Paraná, da Justiça Federal e do Brasil, neste momento em que o juiz federal Edgar Lippman Junior tenta calar a voz do povo brasileiro, reinstituindo a censura à imprensa. O trabalhador assassinado na defesa dos trabalhadores recebeu homenagem póstuma: o auditório do sindicato foi denominado José Mauro Ferreira. Como será lembrado o juiz federal Edgar Lippmann?
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