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Três livros trazem cartas e entrevistas de Ginsberg

Fabio Victor
Folha de S. Paulo

Graças a “Kaddish”, o monumental poema que Allen Ginsberg dedicou à sua mãe, Naomi, ela é mais conhecida dos leitores do que o pai do escritor beat, Louis. Um livro lançado no fim do ano passado no Brasil ajuda a situar melhor a importância da figura paterna para Ginsberg (1926-1997), cuja morte faz 15 anos em abril.

“Negócio de Família” (editora Peixoto Neto) reúne cartas trocadas entre o ícone beat e o pai dele, que também era poeta, de 1944 a 1976 (ano da morte de Louis). Até o meio do ano, pelo menos outros dois lançamentos investigam o pensamento libertário de um dos fundadores do movimento de contracultura surgido no fim dos anos 50 nos EUA: a correspondência com Jack Kerouac e uma coletânea de entrevistas.

Conhecer o ambiente familiar de Ginsberg é essencial para circunscrever sua obra.

Lobotomia – Naomi era militante comunista, tinha problemas mentais, foi internada e submetida a uma lobotomia. Louis, professor de literatura, escrevia e lia poesia em casa, desde cedo influenciando o filho.

Na introdução de “Negócio de Família”, o organizador Michael Schumacher informa que, “ao longo da vida, Allen teria sonhos eróticos envolvendo o pai, que o perturbavam da mesma maneira que os pesadelos com a loucura da mãe e com a culpa que sentia por ter […] autorizado sua lobotomia”.

“Logo percebi que, para entender Allen, tinha de entender a relação dele com o pai, marcada por muito amor, respeito e franqueza”, disse à Folha Schumacher, autor também de uma biografia do poeta, “Dharma Lion” (St Martin’s Press, US$ 45).

A franqueza de que ele fala é a marca de “Negócio de Família”. Praticamente não há assunto proibido na correspondência entre os dois. A homossexualidade de Allen é um raro tópico não citado diretamente, mas os sinais são claros, como numa carta enviada ao pai em 1948.

“Você presume que todos somos sexualmente estáveis; enquanto, por outro lado, conforme me aproximo das pessoas, descubro que são todos uns pervertidos, pecadores, de um jeito ou de outro.”

Em 1959, Allen -poeta e artista experimentalista por essência- dedica numa carta um poema a Louis, em que um dos versos critica o formalismo estético do pai: “Todo o meu ódio pelas formas que você usou”. Em resposta, o velho chia: “Por que você odeia as formas que eu uso? A casa da poesia tem muitas moradas, dentre as quais as formas regulares e o verso livre. A poesia está onde está a poesia”.

Quando Allen descreve sua experiência com LSD, o pai a define como “interessante” e discorre longamente e sem censura sobre o tema. Os debates políticos ocupam parcela significativa da troca entre pai e filho, em geral com discordâncias.

Louis combatia o que considerava “ideias comunistas” do Allen. O filho era contrário ao sionismo do pai e, no início defendia a Revolução Cubana, criticada por Louis.

Pressa – Allen Ginsberg era um missivista fecundo. Há volumes de correspondências suas com Cassady, Kerouac, Peter Orlovsky etc.

Schumacher, que conviveu com o poeta e teve autorização dele para organizar o livro, comenta que Ginsberg escrevia várias cartas por dia, normalmente com pressa, “com uma ortografia claudicante, erros ortográficos, imprecisões na pontuação”.

“Allen sempre escreveu como falou. Ele não tentava soar como um escritor. Uma vez ele me disse: ‘Meus poemas são como pequenos gráficos da minha mente.”

“Alguns eram ditados num gravador, outros manuscritos no diário. Todos soavam como ele falando. O mesmo ocorre com as cartas: é como se Allen estivesse conversando com você num quarto.”

Obra do poeta terá outros dois lançamentos

A editora L&PM promete para junho ou julho “Jack Kerouac e Allen Ginsberg: as Cartas”, correspondência entre dois expoentes da geração beat lançada nos EUA em 2010, organizada por Bill Morgan e David Stanford.

De acordo com o tradutor para o português, Eduardo Pinheiro de Souza, as cartas revelam a influência que um amigo exercia sobre o outro.

“Ver ‘Uivo’ e ‘On the Road’ nascendo das tensões pessoais deles, e o grande esforço que Ginsberg em especial fez para vê-los todos (ele mesmo, Burroughs, Corso, Kerouac) publicados é comovente.”

A Novo Século programa lançar em abril “Mente Espontânea”, reunião de grandes entrevistas dadas pelo poeta, com prefácio de Václav Havel e introdução de Edmund White.

A tradução foi dividida entre Eclair Antônio Almeida Filho, Dirlen Loyolla e Ana Vazquez, com revisão de Cláudio Willer.

Segundo Eclair Filho, um dos grandes momentos do livro é a transcrição de uma entrevista de rádio ao vivo durante a qual Ginsberg é informado da morte de Ezra Pound (1885-1972) e passa então a celebrar o poeta americano.

Na introdução, Václav Havel, o político e dramaturgo tcheco morto no ano passado, lembra da amizade e elogia a sofisticação intelectual de Ginsberg.

Tradutor e estudioso de Ginsberg e dos beats, o poeta Cláudio Willer festeja as novidades. “Diziam que a geração beat era algo circunstancial. O interesse crescente em torno deles prova o contrário.”