Deltan Dallagnol
“Vai todo mundo delatar”, previa apocalipticamente o ex-ministro Romero Jucá (PMDB), quando o Supremo Tribunal Federal voltou a permitir a prisão em segunda instância em fevereiro de 2016. Afinal, a decisão do STF criava uma perspectiva de punição efetiva e, com isso, a colaboração premiada passava a ser uma estratégia de defesa mais atrativa.
A fala era, curiosamente, parte de uma conversa com o futuro colaborador Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, que gravou o diálogo e o entregou à Procuradoria-Geral da República. Jucá afirmou ainda que era preciso mudar o governo “pra poder estancar essa sangria”. Falaram em “grande acordo nacional”, “com o Supremo, com tudo”, que pararia tudo onde estava.
Realmente, os acordos de colaboração premiada fizeram a corrupção política brasileira sangrar. Foi uma grande hemorragia. Vários investigados no esquema da Petrobras revelaram crimes praticados em diversos órgãos públicos federais, estaduais e municipais. Os acordos fizeram a investigação evoluir aos saltos, exponencialmente. Maximizaram a responsabilização de criminosos e a recuperação do dinheiro desviado.
Jucá estava certo. Para parar a Lava Jato, a melhor estratégia era garrotear a colaboração premiada. A decisão do Supremo que impediu a prisão em segunda instância, em novembro de 2019, por apertada maioria de seis votos a cinco, teve esse efeito. Quando a prisão se torna distante e é alta a chance de impunidade, quem vai se submeter a uma pena, revelar novos crimes e devolver o dinheiro?
Para piorar o quadro, novas regras do pacote anticrime inseridas pelo parlamento na sua tramitação colocaram amarras para a realização de acordos de colaboração premiada. As mudanças apontadas, em conjunto, colocam torniquetes na sangria, independentemente do seu propósito.
Continuo, neste artigo, demonstrando que o combate à corrupção vem sendo desmontado no Brasil, não sem apontar caminhos para um horizonte mais promissor. Reitero uma importante ressalva: respeito o Congresso e o STF, instituições essenciais para a democracia brasileira. Ao criticar suas leis e decisões, não estou afirmando que cada parlamentar ou ministro que apoiou certa decisão ou lei é desonesto ou busca proteger corruptos. Não estou julgando intenções. Analiso, sim, os efeitos práticos das leis e decisões sobre investigações e processos e seu impacto no sistema de incentivos e desincentivos à prática da corrupção no país. Críticas, mesmo severas, contribuem para o aperfeiçoamento das instituições. O silêncio e a omissão são aliados da corrupção e da injustiça.
Já há quem questione, a partir da nova lei, a possibilidade de o delator narrar crimes novos e de serem feitas investigações com base exclusivamente em seu depoimento. Acredito que essas duas questões possam ser solucionadas mais facilmente via interpretação, por isso vou me ater à análise de uma terceira inovação: a proibição da negociação mais ampla dos regimes de pena.
Apesar de ainda poder ser negociada a pena total a ser cumprida, não poderão mais ser ajustados dois aspectos essenciais do regime da pena: primeiro, o porcentual de tempo que o colaborador cumprirá em cada um dos regimes (fechado, semiaberto e aberto); segundo, as condições em que se dará a pena em cada regime. Desse modo, impedem-se acordos de colaboração nos moldes como foram feitos com os réus da Lava Jato.
Para compreender a primeira das amarras, é preciso explicar brevemente cada um dos regimes: o fechado é aquele cumprido em penitenciária; o semiaberto, em colônia penal agrícola ou industrial ou, quando não há vagas (o que é comum), o preso dorme em estabelecimento penitenciário e trabalha fora durante o dia; já no aberto, em regra, o preso dorme em casa, onde permanece nos fins de semana, e trabalha durante o dia.
Sem acordo, a progressão da pena segue a lei. No caso de colarinhos brancos condenados a mais de oito anos, começam em regime fechado e, após cumprirem, em geral, 16% (cerca de um sexto) da pena, vão para o semiaberto. Neste regime, cumprem o mesmo porcentual, aplicado sobre a pena remanescente, e vão para o aberto. No aberto, por fim, cumprem o restante da sanção até ser totalmente extinta ou indultada.
Acordos da Lava Jato alteraram esses porcentuais. O de Paulo Roberto Costa, por exemplo, previu um ano de prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica para além do tempo que já estava preso, mais um período de zero a dois anos de regime semiaberto, que seria especificado pelo juiz na sentença tendo em conta a efetividade da colaboração.
Contudo, a pena total estabelecida foi bem maior, de pelo menos 20 anos. A maior parte da punição seria cumprida em um extenso período de regime aberto. Por ser menos oneroso para o réu, é fácil negociar períodos mais longos de regime aberto e eles conferem importante garantia para a sociedade.
De fato, o prazo dilatado de regime aberto permite que, se o réu vier a descumprir o acordo, por exemplo, recusando-se a colaborar ou praticando novos crimes, a pena seja “regredida” para o regime semiaberto ou fechado. Além disso, a pena total elevada impede que seja indultada logo por um decreto de Natal.
O pacote anticrime proíbe esse tipo de composição. A alternativa hoje, no caso de Paulo Roberto Costa, seria a fixação da pena em torno de seis anos de prisão. Tendo de permanecer em presídio, o réu possivelmente não aceitaria o acordo e, se aceitasse, a punição teria sido provavelmente indultada no fim de 2015. Se Paulo Roberto Costa descumprisse o acordo depois do indulto, na melhor das hipóteses, novos processos poderiam ser iniciados – isso se as penas não estivessem já prescritas.
A segunda amarra do pacote anticrime vedou que se estabeleçam condições diferenciadas para cada regime – por exemplo, que o regime aberto envolva apenas restrições aos finais de semana para réus que viajam muito a trabalho.
Ficou também indefinido se o colaborador poderá cumprir pena em regime domiciliar fechado, em vez de presídio. Quando criminosos buscam o Estado para colaborar, normalmente o principal interesse é evitar o cárcere.
A depender da gravidade dos crimes, das provas e processos contra o réu e do interesse público no que ele tem a relatar, era antes possível compensar a ausência de regime fechado em penitenciária com um regime fechado domiciliar ou simplesmente com um tempo maior de regime semiaberto. Isso não poderá mais ocorrer.
O interesse dos réus nos acordos diminuirá substancialmente porque os colaboradores, em razão da quantidade de crimes que costumam confessar, precisarão cumprir pena em regime fechado. Além disso, poderão ser colocados nos mesmos presídios em que estarão delatados, com risco à sua segurança. A fama de “x9” ou “rato” em cadeias pode ser fatal.
Assim, foi restringida a margem de negociação que sempre foi muito importante para acomodar o interesse público e o do colaborador nas negociações. Criam-se grandes dificuldades à celebração de acordos. Ao mesmo tempo, é difícil vislumbrar os benefícios que a nova lei traz ao enrijecer os parâmetros.
Se o propósito era exigir penas maiores, o único caminho seria tornar a pena da corrupção mais séria. O Congresso poderia, nesse sentido, ter aprovado a proposta original do projeto anticrime, que endurecia a pena da corrupção de modo geral, em vez de enrijecer a pena dos colaboradores em particular.
Em nosso sistema, condenados no mensalão foram completamente perdoados por indultos cerca de dois anos depois de começarem a cumprir suas penas. Num cenário disfuncional assim, réus passam a demandar penas ainda mais baixas para colaborar com a Justiça.
As amarras na negociação não conduzirão a penas maiores para delatores, e sim à ausência de delações.
No Supremo, já vinha se estabelecendo o debate sobre a possibilidade de se negociarem os regimes de pena. No entanto, os acordos em geral vinham sendo homologados por estabelecerem condições mais favoráveis, e não mais gravosas, aos colaboradores, o que está em harmonia com decisões do tribunal em outras situações, como quando há déficit de vagas no sistema prisional.
Ainda que se possa tentar, via interpretação, continuar a negociação dos regimes ou restringir a aplicação da lei apenas para novos crimes (diante do fato de que leis penais desfavoráveis ao réu não se aplicam ao passado), as chances de os acordos serem barrados em tribunais aumentam. Com isso, diminui a segurança jurídica e, consequentemente, a atratividade da solução consensual.
Uma saída, além da improvável mudança da nova lei, seria que o Supremo tratasse da questão no julgamento previsto para junho, sobre as colaborações do caso JBS, e reconhecesse uma maior amplitude à possibilidade de negociação.
Em conclusão, a postergação da prisão em segunda instância e as alterações do pacote anticrime colocam em risco a funcionalidade da colaboração premiada no Brasil, justamente quando esse instrumento permitiu a responsabilização de criminosos poderosos em série, algo inédito em nossa história.
A sangria vem sendo estancada. Isso ocorre não apenas mediante a corrosão de instrumentos de investigação, como a colaboração, mas também mediante o enfraquecimento dos próprios agentes da lei, como veremos no próximo artigo.
Deltan Dallagnol é procurador da República e coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato no Ministério Público Federal em Curitiba.}
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