Folha de São Paulo:
De seu multicolorido apartamento na beira de Copacabana, o cineasta Silvio Tendler, 63, se recupera bem de um problema de saúde que o deixou tetraplégico por um período. Mesmo com algumas limitações de movimento, ele conta que está preparando três filmes sobre a resistência ao golpe de 1964.
Nesta entrevista, ele revela mais bastidores da produção de “Jango” e ataca a atual gestão da Agência Nacional do Cinema: “É um lixo”, dispara. A seguir, trechos:
Público de “Jango”
É a maior bilheteria do cinema político brasileiro. Sempre soube que foi de 1 milhão de espectadores. A Ancine diz que foi menos, 500 mil.
Ausências no filme
Duas pessoas foram muito paparicadas para fazerem parte de “Jango” e não quiseram dar entrevista: Darcy Ribeiro e Miguel Arraes. Darcy tinha uma birra comigo por conta de “JK”. Ele se sentiu censurado, magoado. Arraes foi o mais paparicado. Tenho uma especulação sobre a razão da negativa: ele não se enquadrava muito com o Jango.
General Antônio Muricy
Era o homem operacional do Castelo Branco. Houve um “namoro” com Muricy, no estilo Arraes, mas com final feliz. A filha dele, que era minha aluna na PUC, me levou para conhecê-lo. Ele não queria dar entrevista, mas topou.
Falhas e acertos
Tenho lacunas em “Jango”. Foi um equívoco não ouvir o Waldir Pires, o Doutel de Andrade e o Almino Afonso. Do ponto de vista das entrevistas, o filme está bem equilibrado.
Censura
“Jango” empacou na censura. Uma censora deu o conselho: “botem a boca no trombone, senão esse filme não vai ser liberado nunquinha”. Fizemos uma sessão a portas fechadas para toda a imprensa, que comprou a briga. O filme chegou a Brasília liberado.
Festival de Gramado
Armaram todo um esquema para eu não ganhar o festival [“Jango” ganhou prêmio especial do júri e o de melhor filme pelo júri popular em 1984]. Mas o tiro saiu pela culatra, porque vieram as Diretas-Já.
Projetos em andamento
Estou fazendo uma trilogia para discutir o pós-64, a resistência. O primeiro é sobre os advogados contra a ditadura. O segundo é a respeito dos militares pela democracia. O terceiro é “Há Muitas Noites na Noite”, sobre o exílio, sobre o “Poema Sujo”, de Ferreira Gullar.
Ancine
A Ancine virou uma burocracia para moer cineastas. Esse terceiro mandato [do Manoel Rangel] é um casuísmo horroroso. Minha geração, que brigou contra senadores biônicos, tem de conviver com o terceiro mandato biônico. Rangel representa a política do cinemão. Hoje você tem uma agência reguladora que é um lixo. Foi feito um manifesto [pró-Rangel] com mais de 50 cineastas. Já imaginou nomear para a Anatel um presidente apoiado por Oi, TIM, Claro, Vivo? É uma vergonha.
Diversão no Brasil
Público fora de cinema não contabiliza para a Ancine. O cinema foi sequestrado pelo cinemão. O cinema está em 9% do território e 99% das salas estão em shoppings. No interior não tem sala de cinema, de teatro, nada para se divertir. Diversão é fumar crack e ver TV.
Filme político
Não se vai a shopping comprar tênis de marca, comer fast food e ver filme político. O espaço para ele são o cineclube, a laje, a escola, as comunidades. E esse público não é contabilizado. Interessa ao esquema do cinemão dizer que nós fracassamos, que as pessoas não querem assistir a esse tipo de filme. É mentira.
“Poema Sujo”
Não preciso de licença do Manoel Rangel para criar. Ele fez tudo para que o “Poema Sujo” não acontecesse. Não digo ele, mas a Ancine. O parecerista da Ancine, que é anônimo, escreveu: “‘Poema Sujo’ é, no máximo, para passar em TV a cabo fechada, não é para cinema”. É um preconceito contra o povo achar que o povo não gosta de poesia. Fui barrado. Os pareceristas trabalham encapuzados, como nos velhos tempos do DOI-Codi. Vamos tirar os capuzes! O cara tem que assinar o que escreve.
Ser documentarista
O documentarista não faz filmes; faz um único filme ao longo da vida; cada filme é continuação do outro. Tenho um compromisso ideológico e cultural com o que faço. Sou muito patrulhado à esquerda e à direita. Por isso sou respeitado por ambos, porque sabem que sou independente. Imparcial só é câmera desligada. Ligou a câmera, não é mais imparcial. A imparcialidade é uma mentira. Mostro, nos meus filmes, um ponto de vista documentado.
Trajetória
Fui muito respeitado nos anos 1980. Os 1990 foram anos de crises, sofrimento, isolamento. Nos 2000 meus alunos começaram a dizer que a temática política estava fora de moda. Nada como o tempo e a paciência: agora, voltei a ser respeitado. Não mudei de ideia para agradar ninguém.
(ELEONORA DE LUCENA)
JANGO
DIREÇÃO Silvio Tendler
ONDE CCBB (r. Álvares Penteado, 112; tel.: 0/11/3113-3651): 6/4, 18h, e 13/4, 14h; Cinemateca (lgo. Sen. Raul Cardoso, 207; tel.: 0/11/3512-6111): 10/4, 20h
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