por Fernando Henrique Cardoso
Quando me empenhei em fazer algumas reformas e modernizar a estrutura produtiva do Brasil, tanto das empresas privadas quanto das estatais, não o fiz movido por caprichos ou por subordinação ideológica. Tratava-se pura e simplesmente de adequar a produção brasileira e o desempenho do governo aos novos tempos (sem discutir se bons ou maus, melhores ou piores do que experiências de tempos passados). Eram, como ainda são, tempos de globalização, impulsionados por novas tecnologias de comunicação e informação, como a internet, e por avanços nos sistemas de transporte, como os contêineres, que permitiram maximizar os fatores produtivos à escala mundial. Daí por diante a produção se espalhou pelo mundo, independentemente do local de origem do capital. Os mecanismos financeiros, por sua vez, englobaram todos os mercados, interligados por computadores.
Nas novas condições mundiais, ou o Brasil se integrava competitiva e, quanto possível, autonomamente aos fluxos produtivos do mercado, ou pereceria no isolamento e em desvantagem competitiva, pelo atraso tecnológico e pela ineficiência da máquina pública. As privatizações foram apenas parte do processo modernizador. Tão importante quanto foi a transformação do setor produtivo estatal. O objetivo era transformar as empresas estatais em companhias públicas, submetidas a regras de governança, fora do controle dos interesses político-partidários, capazes de competir e de se beneficiar das dinâmicas do mercado.
A zoeira das oposições, Lula e PT à frente, foi enorme. Acusavam o governo de seguir políticas “neoliberais” e de ser submisso ao “consenso de Washington”. A cada leilão para exploração de um campo de petróleo (especialmente daquele onde se veio a descobrir óleo no pré-sal) choviam protestos e mobilizações de “organizações populares”, bem como ações na Justiça para paralisar as decisões. Com igual ou maior vigor, as oposições e os setores da sociedade que ainda não se haviam dado conta das transformações pelas quais passava a economia global protestavam contra as concessões de serviço público, como no caso da telefonia, e iam ao desespero quando se tratava de privatizar uma companhia como a Vale do Rio Doce, ou as siderúrgicas (que, aliás, foram privatizadas nos governos Sarney e Itamar).
Alegava-se que as empresas eram vendidas na bacia das almas, por preços irrisórios. Na verdade, no caso da telefonia, venderam-se 20% de suas ações, as que garantiam seu controle, por 22 bilhões de reais, preço que superou em mais de 60% o valor mínimo estabelecido, Além disso, a privatização permitiu um grande volume de investimentos nos anos seguintes, sem falar do salto tecnológico e do aumento de produção que as privatizações renderam ao país. Passamos, por exemplo, de 2 milhões de celulares nos anos 1990, a 260 milhões hoje em dia.
Dizia-se que as privatizações reduziriam os empregos, quando houve uma expansão extraordinária deles. Que a Vale estava sendo trocada por nada, quando foi difícil encontrar contendores no leilão porque seu valor, na época, parecia elevado e, se hoje vale bilhões, foi porque houve investimento e ação empresarial competente (diga-se, de passagem, em impostos, hoje, a Vale paga muito mais ao governo, por ano, do que pagava em dividendo quando era uma estatal). A Embraer, de quase falida, passou a ser uma das maiores empresas do mundo.
Isso tudo foi paralisado a partir do governo Lula, no afã de manter a pecha sobre o governo anterior de “vendedor do patrimônio nacional” e de neoliberal. Nada de concessões, privatizações nem modernização que cheirasse a globalização.
Enquanto os ventos do mundo favoreceram a valorização das commodities agrominerais, graças à China, e houve abundância de dólares, a máquina econômica rodou a todo vapor e deu a ilusão de que bastaria expandir o crédito, baixar os juros, e incentivar o consumo para o PIB crescer e o bem-estar se generalizar. A crise financeira global de 2007-2009 ensejou ao governo Lula a oportunidade, bem aproveitada, de fazer políticas anticíclicas, com resultados positivos.
Terminados os efeitos mais dramáticos da crise, os governos de Lula e Dilma fizeram uma leitura equivocada: estava dada a licença para enterrar o passado recente dos anos 1990 e aderir sem rebuços ao populismo econômico: mais Estado, mais impostos, menos juros, mais salários, mais consumo e às favas com as concessões e modernizações, às favas com o papel regulador do estado – pelas agências –, em relação ao mercado.
Deu no que deu. O governo Dilma, premido pelas dificuldades de fazer a máquina pública andar e pela sociedade, que exige melhor qualidade dos serviços, redescobriu as concessões (ah! mas não são privatizações, dizem, como se outra coisa tivesse sido feito com as telefônicas…). E as faz mal feitas: pouco dinheiro privado e muito crédito público. Dá-se conta agora de que a retomada das empresas estatais pelos partidos, como se vê na Petrobras e na Caixa, bem como o uso abusivo do BNDES, deu mau resultados. E ainda houve uma perda bilionária de recursos, criaram-se novos “esqueletos” (dívidas não reconhecidas publicamente) e contabilidades criativas impostas para esconder as transferências de recursos não declaradas no orçamento.
Como deve estar arrependida a presidente Dilma, no caso da Petrobras, de não se haver desembaraçado do ônus político legado por seu antecessor, que permitiu ao interesse privado e político penetrar a fundo nas empresas estatais…Apesar de tudo, PT e governo já estão se preparando para enganar o povo na próxima campanha
eleitoral fazendo-se de defensores do interesse popular, como se esse se confundisse com estatização e hegemonia partidária, e estigmatizando os adversários como representantes das elites e fiadores dos interesses internacionais.
Cabe às oposições desmistificar tanto engodo, tomando à unha o pião dos escândalos da Petrobras, rechaçando a pecha ideológica de “neoliberal”, e reafirmando a urgência de mudar os critérios de governança das estatais.
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