Revista de Cultura mostrou como operavam os serviços de informações estrangeiras na região de Foz do Iguaçu
Há exatos 10 anos, em julho de 2003, a revista “Cabeza”, editada pela Academia de Cultura de Foz do Iguaçu, revelou o que quase todo mundo sabe hoje sobre a interferência americana na vida dos brasileiros. É claro que não trazia os dados revelados por Eduard Snowden, mas mostrou com detalhes como operava a espionagem de informantes da DEA, CDO, CIA, FBI e Mossad na tríplice fronteira, em especial, sobre Foz do Iguaçu, a principal cidade da região formada pelo Brasil, Paraguai e Argentina.
“Big Brother avança sobre a tríplice fronteira”, matéria assinada pelo jornalista Zé Beto Maciel, hoje radicado em Curitiba, traz o seguinte lead. “Duas torres de transmissão em dois prédios – uma na Avenida JK e outra na Rua Almirante Barroso – mostram muito bem como funciona a rede de espionagem estrangeira em Foz do Iguaçu. Sob o disfarce de escritório de segurança e um apartamento residencial, informantes da DEA, CDO, CIA, FBI e Mossad bisbilhotam a vida de brasileiros, principalmente os de origem árabe, através de grampos, escutas e conversas animadas nos bares e boates”.
Maciel usou ainda dados de reportagens da revista Carta Capital sobre o financiamento norte-americano à inteligência brasileira e outras informações do Congresso Nacional que investigava, na época, empresas americanas de espionagem em solo brasileiro. A matéria também tratou da extradição Assaad Ahmad Barakat, comerciante libanês, naturalizado paraguaio, preso por supostamente pertencer a grupos radicais islâmicos.
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Big Brother avança sobre a tríplice fronteira
por Zé Beto Maciel
Duas torres de transmissão em dois prédios – uma na Avenida JK e outra na Rua Almirante Barroso – mostram muito bem como funciona a rede de espionagem estrangeira em Foz do Iguaçu. Sob o disfarce de escritório de segurança e um apartamento residencial, informantes da DEA, CDO, CIA, FBI e Mossad bisbilhotam a vida de brasileiros, principalmente os de origem árabe, através de grampos, escutas e conversas animadas nos bares e boates.
Os dois ‘aparelhos’ têm centrais de ligações telefônicas clandestinas. Os contatos com Ciudad del Este e Assunção, no Paraguai, e Posadas e Buenos Aires, Argentina, são feitos sem custos, utilizando números de carteiras de identidade e de CPFs de brasileiros.
No escritório instalado na Rua Almirante Barroso, parcialmente desativado, há ainda na sala principal uma série de centrais com dezenas de telefones escutas. Ao lado, outra sala dispõe de computadores e arquivos de aço onde que repousam chás e todo material degravado da bisbilhotagem. “É impressionante a quantidade de escutas, grampos e arquivos”, diz um jornalista que entrou, inadvertidamente, no aparelhão dos arapongas.
Centrais de escuta – Há ainda outras centrais itinerantes. Elas funcionam de três a quatro meses em cada local – centro, Rincão Francisco, Avenida Paraná e Vila Portes – e são os principais chamam: zes para árabes que querem conversar com parentes e amigos na África e no Oriente Médio. O que eles não sabem é que suas conversas são gravadas. As centrais são coordenadas por mulheres, geralmente duas ou três, e a ligação internacional sai pela metade ou do preço cobrado nas contas. É o valor que atrai os árabes-brasileiros. Eles recebem um cartão, tipo de telefone comum, com um valor que é descontado a cada ligação efetuada.
O mesmo acontece com lideranças politicas, religiosas e comunitárias próximas à causa palestina ou que seja: pró-Iraque, pró-Síria, pró-Irã ou pró a qualquer coisa que afronte os interesses dos EUA. Um deles, inclusive, presidente de uma associação árabe, está marcado e é monitorado constantemente por escutas. Seus passos são acompanhados de perto.
“Não tenho o que me importar. Não faço nada de ilegal e minha participação politica é da valorização da comunidade árabe-brasileira na fronteira. É claro que levantamos bandeiras como a causa palestina e apoiamos a autonomia do povo árabe. Se isso incomoda alguém, o problema é deles”, bravateou o iguaçuense libanês.
Vazamento – Toda a papelada de degravações, fotos, informes e relatórios vão parar na sede dos Órgãos norte-americanos em São Paulo e em Brasília. Desses locais, seguem para a sede da CIA e do FBI e outras agências mui interessadas na economia e, principalmente, no potencial econômico da fronteira trinacional.
Parte dos relatórios e de informes é vazada para a mídia gorda dos três países (Brasil, Paraguai e Argentina). É fácil de se explicar então as matérias negativas das fronteiras cujas fontes são preservadas ou não identificadas, ou ainda, que a maioria das afirmações está no condicional. “Bin Laden teria passado por Foz”, “tríplice fronteira abrigaria células terroristas” e assim por diante.
O pior disso, da ingerência e afronta à soberania nacional, é que tudo acontece sob as vistas grossas e ouvidos moucos da ‘inteligência brasileira”, leia-se Polícia Federal, que até troca informações com os agentes estrangeiros e teve parte de suas operações financiada com dinheiro norte-americano.
A PF local desmente qualquer tipo de interferência nos seus serviços. Conversei informalmente com o delegado Joaquim Mesquita, um pouco antes de sua remoção para Mato Grosso, e ele desmentiu que operações e ações da PF tenham sido subsidiadas por dinheiro norte-americano. “Te mostro tudo, cada centavo que é usado em Foz é dinheiro público e está tudo registrado” disse.
Questionado sobre os recursos dos EUA que foram parar em contas de delegados da PF, Mesquita disse tratar de convênio que vem sendo renovado há anos e que tudo também é comprovado, apesar de afirmar não conhecer seus detalhes operacionais. Ficamos de completar a conversa, mas não retomei o contato com o delegado.
Guarda-chuva – Em parte Mesquita está certo. Há um convênio entre agências norte-americanas e a PF para operações e ações que não são oficiais. O primeiro convênio, chamado “Guarda-chuva”, foi firmado ainda em 1986 e de lá para cá já entraram mais US$ 9 milhões.
Uma das últimas remessas, revelada pela revista Carta Capital, foi a de USS três milhões, enviada pela DEA (Drug Enforcement Administration) para a “Operação Cobra”, desenvolvida na fronteira norte do Brasil, há mais de dois anos. O interessante, segundo a revista, é que 15% desses USS três milhões foram usados para pagar diárias, passagens aéreas, hospedagens de agentes e delegados da PF e da DEA.
O esquema foi revelado na CPI do Narcotráfico em 2000, graças a uma briga entre dois delegados: Vicente Chelotti, então diretor-geral da PF, e Marco Antônio Cavaleiro, que chefiou a divisão de entorpecentes da instituição, e recebia parte dos recursos em sua conta. Cavaleiro foi afastado da divisão e outro delegado ligado a Chelotti enviou a papelada do esquema à CPI.
Cavaleiro e o atual chefe da divisão de entorpecentes, Getúlio Bezerra, chegaram a movimentar, entre 1996 e 1998, cerca de RS dois milhões. “O dinheiro entrava via CC-5 e Citibank. Na embaixada americana, em Brasília, a NAS – outra das agências antinarcóticos dos EUA, e controladora das verbas também da DEA – fazia, e ainda faz, o dinheiro seguir. Em 2001, as agências norte-americanas enviaram USS 5,8 milhões para os projetos brasileiros”, diz uma reportagem da revista Carta Capital.
Rede Brasil – O que os árabes radicados na fronteira desconfiam é que parte das operações da PF na fronteira – principalmente a Rede Brasil entre dezembro de 1997 até abril de 1998- fora financiada com dinheiro norte-americano.
Sob o pretexto de combater os estrangeiros ilegais, a Rede Brasil vasculhou, invadiu e deteve para averiguação mais de 300 árabes na fronteira, além de constrangê-los em inúmeras blitzen na Ponte da Amizade (PIA) e outros pontos em Foz do Iguaçu. A operação contou com a participação de 100 agentes da PF de vários estados e algumas das blitze, comuns na PIA, hotéis, bares, boates e apartamentos, foram supervisionados diretamente por Chelotti, que ocupava a chefia da PF na época.
Ao arrepio da lei, sem mandado judicial ou qualquer respaldo legal, policiais federais invadiram apartamentos e casas dos árabes radicados na fronteira, constrangendo seus familiares e expondo-os vexatoriamente. A operação chegou ao cabo somente com a interferência da OAB e de representantes da comunidade árabe que pedirão ao então ministro da Justiça, Renan Calheiros, em Brasília.
“A situação foi se encaixando. Primeiro foram as matérias, depois vieram as blitze e por fim a operação. Se conclui então que há interferência dos norte-americanos na fronteira”, ressalta um libanês brasileiro.
“Para combater o narcotráfico o correto é ampliar os recursos humanos e materiais da PF, e não pisar na soberania nacional permitindo atividades da polícia de outros países no Brasil. E, pior, permitir que a polícia norte-americana pague despesas, ações, e ainda faça depósitos de milhões em nome de agentes da policia brasileira. É aviltante para a soberania e em outros países, como nos próprios EUA, isso é crime de traição”, disse o procurador da República, Luiz Francisco Fernandes de Souza, à revista Carta Capital.
DEA, NAS, CIA, FBI, ATF, IRS e mais uma série de 13 agências norte-americanas abriram seus tentáculos sobre a América Latina. Antes, combatiam o comunismo, depois o narcotráfico e agora o terrorismo. Juntas, as 19 agências norte-americanas disputam, no Congresso dos EUA, verbas, espaços, e têm satisfações a dar. DEA, CIA e FBI manejavam há três anos um orçamento superior aos USS 40 bilhões. Os EUA mantêm ainda 12 bases para exercícios militares somente na América do Sul.
O Paraguai abriga a duas bases, uma na região do Chaco com uma pista de três mil metros para pousos de aeronaves de grande porte, e outra na região do Alto Paraná, com uma pista de 2,5 mil metros.
No Brasil, os EUA forçaram a barra para insta lar sua base militar em Alcântara (MA). O governo FHC chegou a fechar um acordo com os norte-americanos para a instalação da base. Agora, já no governo Lula, o Ministério de Relações Exteriores emitiu nota afirmando que o Brasil não ter mais interesse na proposta americana.
A recusa do Brasil não significa que a inteligência norte-americana possa refrear sua ação sobre o Brasil. A revista Carta Capital, numa série de reportagens, apontou que o braço das agências americanas no Brasil é o antigo Centro de Dados Operacionais (CDO) da Polícia Federal – ligado à CIA, FBI, Mossad – hoje Serviço de Operações de Inteligência Policial (Soip). O Soip é regido pelo sistema de “informação compartilhada”. “Quem compartilha suas informações é a CIA”, escreve a revista.
Nos anos 90, o CDO chegou a manter 15 escritórios no país. E a CIA já esteve vinculada à Divisão da Polícia Marítima, Aérea e de Fronteiras (DPMAF), ao Centro de Inteligência (CI), ao gabinete do diretor-geral, à Interpol e à Divisão de Repressão a Entorpecentes (DRE). Hoje, os serviços se organizam através do Idec, entidade que coordena outro programa norte-americano’, a Task Force – conceito defendido pelo FBI e pela Procuradoria dos EUA. O programa prega a atuação conjunta de polícias, procuradores, bancos, na prevenção e repressão ao tráfico de drogas e ao crime organizado.
Na verdade, o Idec quer interferir mesmo na indústria da química fina, do aço, biotecnologia e biopirataria, Mercosul, Projeto Sivam, privatizações, setor energético, telecomunicações e, claro, narcotráfico.
O ldec organizou em 2000 o Seminário internacional de Prevenção e Repressão à Lavagem de Dinheiro e à Corrupção na Administração Pública em Curitiba. Entre os palestrantes, agentes do FBI como Richard Boscovitch, Richard Cavalieros e Rodney A. Morgan.
Na segunda quinzena de junho, o deputado federal Cláudio Vignatti (PT-SC) levou aos ministérios das Relações Exteriores e da Justiça pedido para que sejam investigadas as ações da empresa Choice Point, contratada pelo governo dos EUA em território brasileiro. Segundo o petista, a empresa está levantando informações confidenciais de pessoas e empresas em nove países da América Latina. Para Vignatti, a ação é uma violação do direito à privacidade e um ataque à soberania nacional.
O deputado disse que a empresa contratada pelo Departamento de Justiça dos EUA ao custo de US 3,5 milhões de dólares, está montando um banco de dados com informações de cidadãos, como gastos com cartões de crédito, saques de dinheiro em caixas eletrônicos, históricos escolares, compras em supermercados, livros retirados em bibliotecas, listas de telefones discados, registros de pedágios vídeos alugados. Sob o pretexto de levantar dados e antecipar o controle sobre ataques terroristas, a Choice Point recebe do governo norte americano valores diferenciados pelos dados colhidos, denunciou o deputado.
Operação Rede Brasil – Uma operação cinematográfica em abril de 1998, envolvendo cerca de 100 policiais federais, invadiu bares, restaurantes e edifícios frequentados por estrangeiros e descendentes, à procura de suspeitos, de preferência árabes, “envolvidos em células terroristas”. A gravidade: os agentes federais não possuíam sequer um mandado judicial para legitimar suas incursões entre os árabes.
Os responsáveis pela operação Rede Brasil – apelidada pelos agentes de Foz como Operação Brimo, a segunda do gênero desde 1996 – afirmaram que eram para combater a imigração ilegal. Dezenas de pessoas foram detidas aleatoriamente e levadas à Polícia Federal. Outras prisões também foram efetuadas no lado argentino da fronteira. Hassan Khalil Khalil registrou queixa na Polícia Federal.
Ele contou que ao passar pela aduana argentina, acompanhado por três amigos, foram abordados pela Guarda Nacional Argentina e após se identificarem foram detidos. Presos em celas separadas, não podiam se comunicar com a família, advogados ou autoridades brasileiras.
“Durante nossa prisão fomos interrogados por uma pessoa sem uniforme, numa sala escura com uma iluminação forte nos meus olhos”, lembra Hassan. “Essa pessoa falava espanhol, mas não era argentino, ele me perguntou sobre grupos armados, sociedades árabes e grupos religiosos, as quais não soube responder, por não ter conhecimento do assunto. A pessoa que me interrogou, no meu entender era membro do Mossad” completa.
A participação da inteligência americana e do Mossad também foi revelada pela imprensa dos três países. Segundo os jornais de Foz, a Polícia Civil deteve um suposto agente do serviço de Israel enquanto conversava com um informante libanês, e o entregou à PF. As suspeitas sobre as interferências externas começaram em 96, quando foi formulada uma denúncia sobre a atuação de um agente da CIA ao 34° BIMtz.
O caso Assad Barakat
O pedido de extradição do comerciante libanês, Assaad Ahmad Barakat, naturalizado paraguaio, se constitui também no flagrante interesse do Paraguai em atender aos prepostos e informantes norte-america nos e israelenses em Ciudad del Este.
Barakat, que também assumiu a cidadania guarani, está preso em Brasilia e sua extradição está em vias de se proceder. Faltam ainda alguns trâmites legais e todas as apelações feitas pelos advogados João Onésimo de Mello e Umbelina Zanotti foram desconsiderados no Supremo Tribunal Federal.
O caso de Barakat trata-se de uma disputa por uma representação comercial com o informante do Mossad, Ali Ahmed Zaioun, em Ciudad del Este. Barakat é casado com a brasileira Marlene Barakat. O casal tem três filhos iguaçuenses: Ali, Ahmad e Hassan – matriculados e frequentando escola em Foz do Iguaçu.
Barakat tem um apartamento no centro e um sítio em Três Lagoas. Nunca foi preso ou processado no Brasil. No Paraguai era comerciante, dono a oito anos da loja de eletrônicos Casa Apolo, fechada em outubro de 2001 pelas autoridades paraguaias.
Sua vida de comerciante era tranquila, estava no Paraguai há 15 anos, até os atentados sofridos pelos EUA em setembro de 2001. Logo após, 24 comerciantes paraguaios, de origem árabe, também foram presos.
Como representava o joguinho eletrônico “Brick Games”, Barakat se indispôs com Ali Ahmed Zaioun, que pleiteava a representação. Zaioun, além de procurado pela Justiça libanesa, é reconhecido por todo comunidade árabe da fronteira como informante do serviço de inteligência israelense – o Mossad.
Após o atentado aos EUA, o informante passou a indicar à policia, os “terroristas árabes” na capital do Alto Paraná, denunciando por interesse comercial o seu concorrente Assaad Barakat. Perseguido, Barakat não voltou mais ao Paraguai e pediu proteção a PF em Foz do Iguaçu. Em seguida foi preso pela própria PF e levado a Brasília. É este o caso de Barakat.
Sua família hoje vive de favores de amigos e sua extradição ao Paraguai pode abrir um grave precedente aos integrantes da comunidade árabe que por ventura tiverem alguma diferença ou disputa com informantes dos interesses norte-americanos na fronteira. Seu caso está nas mãos do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.
Zé Beto Maciel é jornalista. Esta reportagem foi publicada revista “Cabeza”, editada pela Academia de Cultura de Foz do Iguaçu, em
julho de 2003.
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