A reforma do sistema penitenciário sempre foi um tema da esquerda brasileira. Assim que terminou a ditadura militar, formamos comissão para entrar nas prisões e estimulamos os mutirões destinados a liberar os que já haviam cumprido sua pena. Brizola foi mais longe, autorizando a implosão do presídio da Ilha Grande. Pessoalmente, preferia que o presídio fosse restaurado, com múltiplos usos, e permanecesse como referência histórica. Hoje são escombros e só os mais velhos se lembram daquilo, assim como do próprio lazareto, um espaço cavernoso na ilha que no período colonial servia para prender estrangeiros indesejáveis, alguns em regime de quarentena.
O PT faz parte dessa história. Formada no momento em que houve um massacre em Franco da Rocha, a Comissão Teotônio Vilela visitou dezenas de presídios. Dela participavam importantes intelectuais do PT: Antonio Candido, Marilena Chauí e Hélio Pellegrino, entre outros.
A primeira Comissão de Direitos Humanos da Câmara foi inspirada pelo deputado mineiro Nilmário Miranda (PT). Depois dele, Marcos Rolim (PT-RS) organizou uma caravana nacional para denunciar as condições carcerárias. Recentemente, o deputado Domingos Dutra (PT-MA) fez de novo a peregrinação pelos presídios. Estivemos juntos em São Luís, onde alguns presos foram decapitados num motim.
Com esse passado, fiquei perplexo com a afirmação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, de que preferia morrer a viver anos numa “prisão nossa”. Foram dez anos de governo petista, com vários ex-prisioneiros em sua cúpula, a começar pela presidenta Dilma Rousseff. Será que o tempo passou assim de forma tão imperceptível para os que assumiram o poder em 2002?
Nossas palavras não corresponderam aos fatos, nossa piscina está cheia de ratos. Nos presídios, o governo petista foi apenas uma continuidade medíocre das forças que combatia.
As cadeias brasileiras ganharam visibilidade com a passagem por elas de intelectuais da esquerda. A própria Ilha Grande foi celebrizada por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere, transformado em filme. Com a prisão dos opositores ao regime militar de 64, nova luz se fez sobre os presídios. Daí, no período de democratização, os inúmeros esforços para chamar a atenção sobre eles e a necessidade de humanizá-los e modernizá-los.
Com pena superior a dez anos, o destino de José Dirceu despertou em Cardozo e no ministro do Supremo Tribunal Dias Toffoli, uma nova reflexão sobre o Código Penal e os presídios. Não é o mesmo tipo de prisão de Graciliano, de Nise da Silveira ou mesmo dos opositores da ditadura militar. Os argumentos não são mais políticos nem se fala em investimentos e reformas em presídios. Toffoli lamentou que um diretora do Banco Rural fosse presa porque era uma bailarina e não representava perigo. Açougueiros ou motoristas de caminhão representam algum perigo? Sua tese indicava que a cadeia deveria ser reservada aos crimes de sangue.
Não se deve ser como a China, que fuzila corruptos. Mas daí a ter uma nova tolerância com a corrupção vai enorme distância. Não era a esquerda que afirmava que a corrupção, desviando recursos vitais para os mais pobres, os condena à morte mais rápida? É uma ironia que uma parte do universo político se interesse pelas penitenciárias porque José Dirceu foi condenado.
No mundo real – em que os delicados, como dizia o poeta, preferiam morrer -, incêndios de ônibus, assassinatos, rastros de fumaça, tudo parece vir dos presídios. Maus tratos e execuções sumárias são usados como pretexto para incendiar as ruas. Uma política real de direitos humanos tende a reduzir esses pretextos. Mas, ainda assim, há novos elementos que a experiência no campo dos direitos humanos me obriga a refletir. O primeiro é o silêncio com que o movimento recebe a morte de policiais. Continuamos vendo os direitos humanos ameaçados apenas pelo Estado, ignorado novas frentes de ameaça, como traficantes e milícias.
Outra ilusão, que os ingleses superaram: a de que os presos cessam de cometer crimes quando vão para a prisão. Eles criaram um setor destinado a prevenir, investigar e até punir os crimes dentro dos presídios. A situação carcerária é muito complicada nas cadeias superlotadas, mas também nas chamadas penitenciárias de segurança máxima, onde estão os presos mais perigosos.
O mensalão é uma gota nesse oceano que envolve 300 mil pessoas e suas famílias. Não se resolve a questão como na vida cotidiana. Roberto DaMatta diz que muitos brasileiros odeiam fila porque é um tratamento democrático. E às vezes dão um jeito de obter um tratamento especial.
As falas de Cardozo e Toffoli não me entristecem apenas porque ressaltam a ineficácia do governo na reforma dos presídios. Entristecem porque a esquerda, além de desprezar o discurso humanista na prática do poder, opta, em defesa própria, pela visão aristocrática que tanto combateu no século passado.
O problema dos presídios continua a existir, apesar de todas as abordagens escapistas. Por que não aproveitar o momento e encarar uma reforma?
É preciso aceitar a premissa de que a cadeia é para todos os condenados a ela. Isso dá novo sentido àquela frase de Thoreau. É bom conhecer a cadeia não só para testar o nível de civilização do País. Um dia, você mesmo, ou alguém muito próximo, pode passar alguns anos por lá.
Ainda sonho com a cadeia. Não com as paredes de concreto, sua atmosfera, mas como uma sensação abstrata de imobilidade. É apenas a metáfora da inércia diante de atitudes que precisam ser tomadas no cotidiano.
Os presídios no Brasil são da Idade Média, diz o ministro. E as nossas cabeças foram detidas quando? Em que cela ou calabouço elas adormecem até hoje?
Como dizia o humorista carioca Don Rossé Cavaca: acorda, já é 2012 e você precisa trabalhar.
Fernando Gabeira é jornalista
Deixe um comentário