PSDB RESSUSCITA UDN LACERDISTA
Cláudio Gonçalves Couto
Certa feita, o ex-governador Leonel Brizola disse que “o PT é a UDN de macacão”. Essa frase não se explicava apenas pela notória destreza verbal do caudilho gaúcho e pela histórica rivalidade de seu trabalhismo decadente com o obreirismo emergente do PT. Ela também se justificava pela crítica à postura de oposicionismo contumaz e desleal, associada a um empedernido moralismo, que marcava o partido de Lula na época em que a conquista do governo federal ainda se encontrava algo distante. Chegava-se ao ponto de que mesmo nos estados e municípios em que o partido conquistava governos, certos petistas reivindicavam que se fizessem “governos de oposição” à administração federal do dia – priorizando a desestabilização dos adversários no plano nacional em detrimento da condução de sua própria administração.
Poder-se-ia concordar com Brizola e notar neste traço uma real semelhança com a velha UDN. Afinal, o partido de Magalhães Pinto, Milton Campos e, sobretudo, Carlos Lacerda, não poupava esforços na desestabilização de seus adversários varguistas no governo federal – em particular o próprio Vargas, levado ao suicídio. Mas a orientação para o oposicionismo contumaz do PT – afora o mesmíssimo oportunismo na busca do poder – provinha de uma matriz ideológica distinta daquela da UDN. Tinha a ver com um vezo revolucionário de matriz socialista, difusamente marxista, que coloca em segundo plano a democracia dita burguesa na busca dos objetivos políticos. Já os udenistas se nutriam num elitismo liberal-conservador (mais conservador do que liberal, aliás), que também dava pouca importância à democracia, tendo na desestabilização conspiratória de seus adversários um método para alcançar o poder. Talvez nada represente melhor essa estratégia de oposicionismo desleal da antiga UDN do que a frase de Lacerda dirigida aos recém-eleitos Juscelino Kubitschek e João Goulart: “Esses homens não podem tomar posse, não devem tomar posse, nem tomarão posse.”
Mas a UDN e suas lideranças não atuavam de forma isolada nesta sua estratégia de oposicionismo desleal. Elas contavam com a sustentação política de setores da sociedade que se identificavam com sua perspectiva elitista liberal-conservadora. Para esses setores, Vargas e o favorecimento dos setores mais pobres da população por meio de políticas sociais eram anátemas: cumpria extirpar a eles e às práticas imorais de trato da coisa pública que supostamente lhes acompanhariam. Mas essa não era tarefa das mais fáceis, de modo que apesar da participação de alguns udenistas em governos de herdeiros do varguismo (e mesmo do próprio Vargas) entre 1945 e 1960, a UDN como tal não conseguia entrever como tarefa fácil a sua chegada ao poder. Para piorar, quando a UDN parece finalmente chegar ao poder pelas mãos de Jânio Quadros (um “udenista novo” nos termos de Sílvio Tendler), a experiência não dura mais do que sete conturbados meses.
Foi essa constante frustração na busca do poder nacional que alimentou o oposicionismo contumaz, a desqualificação virulenta dos adversários e a conspiração golpista que, ao fim e ao cabo, se consumou em 1964. Tudo isto fez com que o udenismo entrasse para a história como o sinônimo de um hipocritamente moralista conservadorismo social, descompromissado de qualquer lealdade democrática. Se é possível identificar hoje algum partido que seja legitimamente herdeiro da tradição udenista, este certamente não é o PT (apesar da frase de Brizola), pelas profundas diferenças históricas, organizacionais, ideológicas e sociais da agremiação. Seria, na verdade, o PFL, hoje rebatizado de DEM – já que o PDS, hoje PP, mal é um arremedo do que outrora foi a ARENA, partido oficial do regime que Tancredo Neves denominou como “Estado Novo da UDN”.
O DEM bem que tenta viabilizar-se como o ocupante do espaço principal à direita de nosso espectro político partidário. Logrou inclusive alguns sucessos nessa empreitada: sua recente repaginação, adotando novo nome, rejuvenescendo suas lideranças nacionais e capitaneando uma importante derrota do governo num tema caro ao liberalismo-conservador – a redução de impostos (na votação da CPMF). Todavia, o partido tem perdido força nas disputas estaduais e não conta com um nome nacional que pudesse entrar de forma competitiva na disputa presidencial. Tem-se visto irremediavelmente a reboque de seu parceiro mais ao centro, o PSDB, mesmo onde obteve importante vitória eleitoral – em São Paulo. Com isto e com o declínio das lideranças e partidos conservadores mais tradicionais, que sucumbiram ao fisiologismo rasteiro, tornando-se inclusive base de sustentação do governo Lula, o eleitorado mais consistentemente conservador viu-se órfão. E fez sua opção mais de forma negativa que positiva.
Se há um sentimento que tem animado o espírito político conservador hoje no Brasil, este é o do antipetismo (e uma variante sua, o antilulismo). E nenhuma outra agremiação tem incorporado melhor este papel de anti-PT e anti-Lula do que o PSDB (com a sugestiva exceção mineira). Ao tornar-se estuário deste conservadorismo social e político, os tucanos têm adotado – sobretudo na cena nacional – um discurso e uma postura cada vez mais conservadores e elitistas. É a forma encontrada de reter o novo eleitor – esse direitista “tucano novo”. O curioso disto é que talvez nenhum partido seja mais próximo do PT em sua origem histórica e no perfil de seus formuladores do que o PSDB. Mas a disputa eleitoral da democracia prega peças: ela força os partidos para onde os eleitores estão. Isto talvez explique o processo de udenização pelo qual passam os tucanos.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da PUC-SP e da FGV-SP – [email protected]
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