Miguel Reale Júnior
Deteriora-se a situação econômica, entrando o País em recessão com encolhimento do PIB em 2%, num cenário sem esperança, com provável ainda maior redução dos investimentos e do consumo. E as chamadas “pedaladas”, consistentes em valer-se a União de empréstimos nas suas instituições financeiras (Banco do Brasil, Caixa Econômica, BNDES) para suprir deficiências do Tesouro visando a cumprir programas essenciais como Bolsa Família, seguro-desemprego e Minha Casa, Minha Vida não vêm a ser uma questão meramente técnico-contábil.
A crise que vivemos tem como uma das causas o recurso às pedaladas, pois, sem meios, se maquiou haver capacidade financeira com empréstimos vedados pela lei, além de deixar-se de registrar tais débitos, falsamente forjando-se um superávit primário. Transformou-se ilicitamente dívida em superávit.
O descontrole da contas governamentais permitiu a continuidade de benefícios fiscais, a gastança nos milhares de cargos em comissão, os desvios de dinheiro em contratos com sobrepreços astronômicos, na administração direta e indireta. A falência do Estado foi construída com o escudo das pedaladas para disfarçar o rombo. E agora toda a população, especialmente a mais pobre, paga a conta com inflação e desemprego.
A importância da responsabilidade fiscal é de tal monta que condutas de afronta às finanças públicas foram alçadas, pela Lei n.º 10.028/2000, em crimes, artigos 359 A e seguintes do Código Penal, introduzindo-se na lei do impeachment tais atos como passíveis de levar à cassação do presidente. No caso, haveria também, em tese, o crime de falsidade ideológica, previsto no artigo 299 do código, por se omitirem como despesa do Tesouro as dívidas contraídas, gerando falso superávit primário. Representação dos partidos de oposição imputa à presidente a prática destes crimes comuns.
A Constituição de 1988, com relação ao processo por crime comum contra o presidente da República, estabelece no artigo 86, § 4o, que na vigência de seu mandato não pode o presidente ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções, como, por exemplo, se provocasse uma lesão corporal culposa dirigindo um veículo.
Em março do corrente ano, o procurador-geral da República, bem como o relator no STF (PET 5263/DF), ministro Teori Zavascki, manifestaram-se no sentido de, nos termos da Constituição federal, não poder o presidente da República, na vigência de seu mandato, ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções. Indeferiu-se, com razão, a apuração de responsabilidade da presidente por fatos anteriores à sua posse em 2011, relativos à Petrobrás e à campanha eleitoral.
Surpreende agora Rodrigo Janot dizer, na sabatina no Senado, haver uma questão jurídica em pauta, em vista da imunidade da presidente da República no caso das pedaladas. Ressalto não haver, segundo penso, nenhuma divergência no STF em face de crimes praticados pela presidente se não estranhos às suas funções.
A orientação do STF, conforme se verifica em acórdãos do plenário, relatados pelo ministro Celso de Mello (Inq 672QO, julgamento em 16/9/1992 e Ação Penal 305/92), é no sentido de poder o chefe de Estado, nos ilícitos penais praticados em seu ofício ou em razão dele, ainda que vigente o mandato, ser submetido a processo-crime, desde que haja autorização da Câmara dos Deputados.
Estabelece-se, em face do princípio republicano, caber a possibilidade de responsabilizar penal e politicamente o presidente “pelos atos ilícitos que eventualmente venha a praticar no desempenho de suas magnas funções”. E alerta-se, na decisão, estarem excluídas de responsabilização pelo artigo 86, § 4o, apenas as infrações penais comuns cometidas pelo chefe do Executivo da União que não tiverem relação alguma com o exercício do ofício presidencial.
Em decisão mais recente, também do plenário do STF, relatada pelo ministro Sepúlveda Pertence (HC 83.154, julgamento em 11/9/2003), asseverou-se: “O que o art. 86, § 4.º, confere ao presidente da República não é imunidade penal, mas imunidade temporária à persecução penal: nele não se prescreve que o presidente é irresponsável por crimes não funcionais praticados no curso do mandato, mas apenas que, por tais crimes, não poderá ser responsabilizado, enquanto não cesse a investidura na presidência”.
No caso das pedaladas, o crime de responsabilidade fiscal não é estranho ao exercício das funções de presidente: ao contrário, é próprio dessas funções, com a realização de atos que diretamente se inserem nas atribuições presidenciais, como a de exercer, com o auxílio dos ministros de Estado, a direção superior da administração federal.
Nada mais específico da alta administração do que examinar e determinar a destinação de recursos, mormente em face de programas essenciais de governo. Sendo os crimes de responsabilidade fiscal próprios das funções de chefe do Executivo, devem ser objeto de processo criminal independentemente de terem ocorrido neste ou no mandato anterior, pois importa é saber se o ilícito penal foi praticado no exercício do ofício presidencial.
Ademais, a presidente era unha e carne com o secretário do Tesouro, confessadamente responsável pelas pedaladas, com quem sempre se reunia. Por mais distraída que fosse, a presidente não poderia deixar de ver empréstimos no valor de R$ 40 bilhões.
As razões de Janot no Senado, no sentido de descaber processo contra a presidente, são destituídas de base legal. Os crimes contra as finanças públicas, que infelicitam o povo, devem ser levados à apreciação do STF, que solicitará autorização à Câmara dos Deputados para prosseguir o processo, com afastamento temporário da presidente, agora ré confessa diante da proposta de Orçamento deficitário em 2016. Deficitário porque sem a maquiagem das pedaladas.
Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras , foi ministro da Justiça.
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