Fernão Lara Mesquita
Se a morte de Teori Zavascki e o peso crescente do STF põem mais uma vez em evidência a fragilidade da nossa (des)ordem institucional, a conversa de surdos em “looping”, tão igual a si mesma que não faz senão aborrecer e alienar, em que se transformou a discussão pública do dramalhão nacional mata qualquer esperança de melhora.
Ao fim de três anos encalhado o País colhe as provas de que o destino do processo que pode mudar o seu destino não está referido a leis e procedimentos certos e sabidos nem a respeito de delitos tão elementares quanto o assalto recorrente aos bens públicos por agentes do Estado e empresários por eles cooptados. Tudo está pendente exclusivamente da maneira como houve por bem tratá-los desta vez, e somente desta vez, o ministro morto, em cujas mãos a impertinência de um juiz dissonante jogou a sorte dos políticos denunciados na Operação Lava Jato. E, sendo assim, tornar a sua sucessão neutra e tranquila como deveria ser se fôssemos regidos por instituições, e não por pessoas, é uma missão impossível, se não por todas as outras razões, porque na verdade ninguém sabe exatamente se e como Teori Zavascki se teria decidido a agir em relação aos seus quase réus. Tudo a esse respeito é “segredo de Justiça”, expressão que, já de si, é uma contradição em termos. Havia só vagas indicações sobre o que ele “estaria pensando” em fazer.
Tudo, portanto, pode mudar se mudar o relator, ainda que não mudem os fatos que ele relata. Sendo o objeto do processo a nata dos brasileiros “especiais”, aqueles que vivem do e para o Estado e estão acima da lei, a única “providência” possível, mesmo para as nossas autoridades mais altas e mais bem-intencionadas, é procurar alguém que “seja parecido” ao ministro morto em matéria de “pensamento jurídico”, seja o que for que tal expressão queira dizer, o que garante que não existe o menor risco de que qualquer coisa mude realmente para melhor no final dessa história. A hipótese menos ruim é que, com a ajuda da sorte, esse incidente não chegue a fazer tudo piorar muito, como tantas vezes já aconteceu em episódios semelhantes da História do Brasil.
Nada a estranhar. É essa mesmo a lógica do “sistema corporativista”. Transferir intacta, de sua majestade para os três Poderes do novo sistema, a prerrogativa de distribuir a quem lhe interessar pudesse, não mais títulos explícitos de “nobreza”, mas sim “direitos adquiridos” eternos e frequentemente até hereditários, e encarregar o Poder Judiciário de “republicanamente” fazê-los valer nos seus tribunais, em vez de simplesmente no cadafalso como ocorria antes, foi o artifício com que a elite em torno do imperador exorcizou a revolução democrática que varreu o absolutismo da Europa e castrou a República que tentou se insinuar ao Brasil.
A “Nova República”, a partir de 1988, apenas deu a última forma à velha aberração. Desde então a “privilegiatura” saiu do armário e a própria “Constituição da República” passou a ser oficialmente o repositório dos seus “direitos adquiridos”, dos mecanismos que automatizam a sua contínua expansão e das “pétreas” garantias da sua intocabilidade.
Assim como sua congênere norte-americana, o modelo de onde tiramos a nossa, a Suprema Corte tem por função avaliar a consonância de todos os atos dos outros dois Poderes e mais os das instâncias inferiores do próprio Judiciário com a Constituição. O problema é que a Constituição americana, com 230 anos, tem sete artigos e 27 emendas, todos definindo exclusivamente quais são os direitos de todos ficando tudo o mais fora da lei, e a brasileira, com 29 anos, tem 250 artigos e 93 emendas, quase todos definindo aquilo que é apenas de alguns, em aberta contradição com os Princípios Fundamentais que enuncia no primeiro dos seus nove capítulos, o único que guarda algum parentesco com ideais democráticos autênticos. É um falso problema, portanto, o tão criticado “protagonismo” do STF que um poder Legislativo desmoralizado invoca na sua disputa de poder com o Judiciário e em torno do qual a imprensa e seus “especialistas” de plantão, ingênua e infindavelmente, “batem caixa”. Assim como é uma completa perda de tempo qualquer tentativa de cerceá-lo sem tocar na sua causa estrutural, pois o “protagonismo” não é da Corte, é da Constituição, e tudo acabará sempre obrigatoriamente no Supremo se tudo e mais alguma coisa continuar podendo ser enfiado na Constituição.
Tudo, no drama brasileiro, está referido a essa mutilação essencial que fez da nossa tão propalada “democracia” um falso brilhante. Passados 118 anos de distribuição desenfreada desses privilégios cá está o Brasil, como era típico de todo o sistema feudal e pelas mesmíssimas razões, estertorando na miséria, enquanto a Corte onde tudo o mais anda sempre tão devagar passa lei atrás de lei a favor de si mesma, como se vivesse em outro planeta. Em pleno século 21 e com a democracia moderna, que foi inventada justamente para acabar com isso, comemorando o seu 241.º aniversário, não conseguimos superar sequer as angústias e incertezas vividas pelos súditos das monarquias desaparecidas desde o século 19, nas quais a morte do rei impunha a todos o que a sorte decidisse sobre a personalidade do herdeiro do trono, com a diferença de que hoje não temos rei, temos reis.
Não adianta sonhar com a redução da corrupção sem tocar na indemissibilidade do servidor público e no condicionamento da duração dos mandatos dos representantes eleitos estritamente à satisfação dos seus representados. Não adianta tentar impedir a manifestação dos efeitos sem tratar de remover as suas causas. Enquanto não nos decidirmos a banir da Constituição e da nossa ordem legal como um todo tudo o que nelas está em contradição com o princípio da igualdade de todos, em direitos e em deveres, perante a lei, continuará sendo ilegal tornar sustentável a economia e inconstitucional fazer justiça ou dar os passos necessários para extinguir a miséria no Brasil.
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