Enquanto a realidade do poder aguarda a futura primeira-dama, seus familiares mantêm uma vida humilde num casebre a 500 metros de uma boca de fumo situada na precária Ceilândia, cidade a 26 quilômetros do centro da capital federal onde ela nasceu
Ary Filgueira, Rudolfo Lago e Wilson Lima, IstoÉ
Na quarta-feira 21, a futura primeira-dama do Brasil, Michelle, mulher do presidente eleito Jair Bolsonaro, conheceu o suntuoso palácio em que poderá se instalar a partir do dia 1º de janeiro. Durante pouco mais de uma hora, foi conduzida pela atual primeira-dama, Marcela Temer, pelas salas e corredores dos sete mil metros quadrados do Palácio da Alvorada, construção de três andares em mármore e concreto concebida por Oscar Niemeyer no final da década de 1950. A 26 quilômetros dali, seu pai, Vicente de Paulo, seguia sua rotina de motorista de ônibus aposentado, ao lado da atual mulher e madrasta de Michele, Maísa Torres, na casa em que moram numa quadra da Ceilândia Norte, periferia do Distrito Federal. Ali, Vicente e Maísa tocam seu pequeno negócio, uma serigrafia que imprime camisetas para a Igreja Adventista da qual fazem parte, e que Michele também frequentava quando vivia em Brasília. A situação de vulnerabilidade é incontestável, principalmente em se tratando da família da mulher do futuro presidente do Brasil. Há uma boca de fumo instalada a 500 metros da porta, no final da rua. O casal admite preocupação. “Falta polícia para tirar esses criminosos daqui. A gente já pediu, mas não foi atendido”, revela a madrasta de Michelle Bolsonaro, a quem ela chama de “segunda mãe”.
Era ali, em outra casa próxima na mesma região de Ceilândia, que Michelle vivia antes de conhecer, se casar com Jair Bolsonaro e se mudar para o Rio de Janeiro, onde os dois vivem atualmente. Em tudo, o ambiente, a região, os hábitos, a realidade é diametralmente oposta da que Michelle encontrará quando retornar definitivamente a Brasília para viver. Seja no Alvorada ou mesmo na Granja do Torto, caso opte por se acomodar lá. O cômodo reservado para ela no Alvorada foi decorado com sofás do renomado designer italiano Tobia Scarpa e tapetes persas. Já a casa de Vicente, seu pai, e Maísa, a madrasta, exibe no beco em frente um lixo acumulado, o que confere ao lugar um aspecto de abandono. O acesso ao local é feito por um asfalto maltratado pelas chuvas. Recentemente, nos arredores, houve uma tentativa de estupro. Por isso, eles não descuidam da segurança, com grades que ocupam do chão até o teto.
Foi nessa condição precária que a próxima primeira-dama do País viveu sua infância e adolescência. Na residência de portões pretos, Michelle costumava se reunir com os irmãos e passar oras a fio, brincando, conversando e falando dos seus sonhos. Antes das eleições, a futura primeira-dama e o marido deputado federal eram visitas constantes. Momentos em que os gostos do casal se dividiam. Michelle apreciava o frango ao molho que Maísa prepara. Bolsonaro preferia o frito. Agora, eles mesmos aconselham ao casal que mantenham uma certa distância. Apesar de estarem claramente expostos, não desejam sair dali. Querem seguir tendo a necessária privacidade para manter o que consideram uma virtude cristã: a simplicidade.
Foi através das grades pretas que a “segunda mãe” de Michelle conversou com a reportagem de ISTOÉ, na quarta-feira 21, na mesma tarde em que a primeira-dama conhecia o palácio em que poderá morar. Naquele momento, ela trabalhava na serigrafia que funciona nos fundos da casa. O principal cliente é a Igreja Adventista próxima, onde juntos Michelle e família professavam sua fé. Maísa é tão próxima da futura primeira-dama que ela foi a primeira pessoa a quem Michelle recorreu após o atentado à faca sofrido por Bolsonaro. Era por meio dela que o restante dos familiares recebia informações sobre o estado de saúde do então candidato a presidente. No início um pouco arredia, Maísa disse num primeiro momento que não gostaria de dar entrevista para evitar “exposição”. Aos poucos, foi se soltando. Segundo ela, apesar de a vizinhança saber da relação com o futuro presidente do País, eles tentam manter a discrição para não atrair os forasteiros. E, claro, por uma questão de segurança. “Somos guardados pelos nossos vizinhos. Aqui, se alguém vem procurar pela família da Michelle, ninguém informa onde fica”, afirmou Maísa.
Simplesmente Jair
Casada há 33 anos com o ex-motorista de ônibus e pai de Michelle, ela reside na mesma casa há 31 anos. Depois que o filho mais novo, Diego, de 30 anos, casou, seu Paulo, como é chamado carinhosamente pelos amigos de quadra, dividiu o lote. Assim, parte do imóvel foi inicialmente ocupada pela família do filho. Hoje, esse compartimento está alugado para um casal. Os R$ 600 que Paulo e Maísa recebem dos inquilinos somam-se ao dinheiro angariado das encomendas da serigrafia e se constituem em uma das três rendas do casal Torres, que também conta com a aposentadoria de Paulo.
Sempre que podia, o casal hoje palaciano percorria os 26km que separam a Câmara dos Deputados de Ceilândia para almoçar com o pai e a madrasta da primeira-dama. Segundo Maísa, Bolsonaro parecia de casa. Bolsonaro conheceu Michelle na Câmara. Ela era secretária da liderança do PP, partido ao qual o hoje presidente eleito era filiado à época. A primeira e única exigência feita pelo ex-capitão foi a de que, após atravessar as grades pretas do portão da casa, não queria ser tratado como deputado e nem candidato a presidente. Simplesmente Jair.
Mesmo com as visitas constantes à família da mulher, Bolsonaro ainda via um distanciamento entre ele e sogro, que o enxergava com desconfiança, mesmo após assumir o compromisso matrimonial com a filha. Coisa de pai-coruja. Seu Vicente de Paulo ainda conserva o aspecto sisudo e fechado de outrora. Mas, recentemente, abriu a guarda de vez para o genro, com quem mantém uma sincera amizade – a ponto de ser chamado pelo apelido de Paulo Negão, que é como Bolsonaro costuma tratá-lo. Maísa destaca que o casal presidencial é harmônico. Segundo ela, a filha chega a ser até mais brincalhona. “Agora ela está mais reservada. Um dia vocês a verão como é de verdade”, revela.
O casal possui dois filhos: Diego e Eduardo Torres. Além de ser fotógrafo de casamento e cinegrafista, Dudu, como é conhecido, ganha a vida como motorista do aplicativo Uber. Mas também parece ter adquirido a vocação de Bolsonaro. Nas últimas eleições foi candidato a deputado distrital pelo PRP. Não foi eleito, mas teve 2,5 mil votos. Ao explicar o motivo da derrota, foi categórico: “Deveria ter apostado nas redes sociais. Não pude fazer campanha porque estava trabalhando”.
Para não perder a paz na cercania onde reside, o casal adotou o comedimento durante as eleições presidenciais deste ano. A casa de Paulo e Maísa não era identificada com placas nem cartazes de campanha. Até camiseta com a foto do candidato foi proibida por Paulo. Claro, Bolsonaro também não apareceu por lá em meio à campanha, a fim de não causar alvoroço. A madrasta não sabe quando poderá repetir o frango ao molho ou frito para os convivas agora ilustres. Uma oportunidade certa será a posse. A família de Michelle foi toda credenciada e deve ocupar um lugar nobre na cerimônia.
Mais velha que os irmãos, Michelle Bolsonaro foi a primeira a adquirir a independência financeira. Seu primeiro trabalho foi num supermercado, trabalhando de expositora de marcas de produtos revendidos. Por ser muito bonita, vestia o uniforme do produto para atrair a atenção dos clientes. Antes de trabalhar na Câmara, ela fez bico numa empresa de animação de festas infantis. Em 2006, arrumou o emprego como secretária na Câmara. A partir daí, seu destino começou a mudar. Dois meses depois de Bolsonaro convidá-la para trabalhar em seu gabinete, casaram-se no papel. Em 2008, com a súmula do STF que impedia o nepotismo no serviço público, ela deixou o cargo. Agora será a primeira-dama do Brasil.
Conforme apurou ISTOÉ, Michelle quer ter participação ativa no governo, especialmente relacionada a causas dos portadores de deficiência. Ela, inclusive, já entrou em contato com os responsáveis pela transição no governo Temer para se informar sobre o funcionamento da área. Mantém conversas permanentes com a Secretaria de Direitos Humanos. Pretende ter uma atuação bem menos discreta que a de Marcela Temer, que chegou a ser designada embaixadora do projeto Criança Feliz no atual governo – sem recursos, o programa não foi adiante. Se Marcela enquadra-se no rol das primeiras-damas de atuação mais discreta, como Teresa Goulart, Michelle parece espelhar as mais ativas, como Sarah Kubitschek e Ruth Cardoso. “Ela sempre tomou a frente de tudo. Uma vez, saiu pedindo dinheiro para reconstruir as casas da Vila dos Carroceiros, que pegou fogo, atingindo a maioria delas”, recorda o irmão, referindo-se ao local onde viviam catadores de lixo.
Fluente em Libras, a linguagem de sinais usada pelos deficientes auditivos, Michelle uniu-se à deputada eleita Joice Hasselmann (PSL) para iniciar um projeto em prol dos mais necessitados. Na manhã da quarta-feira 21, antes de se encontrar com Marcela Temer no Palácio da Alvorada, Michelle confirmou em entrevista coletiva sua intenção de atuar de forma mais marcante na área social. “Era algo que eu já fazia antes de me casar com o Jair. Eu tenho um chamado para ação social. É algo que Deus colocou na minha vida, no meu coração”, disse Michelle. A 26 quilômetros dali, Paulo Vicente e Maísa torcem por Michelle. De lá, a princípio, não cogitam sair. Só gostariam mesmo que alguém desse cabo da boca de fumo próxima de casa. Ainda nem se dão conta de que, agora, podem pedir providências à principal autoridade do País.
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https://istoe.com.br/o-contraste-entre-os-dois-mundos-de-michelle/
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