O advogado Luiz Fernando Casagrande Pereira teve duas razões pessoais para acompanhar com interesse o julgamento da chapa Dilma-Temer pelo TSE. A primeira: é dele o parecer que forneceu a tese central da defesa do presidente Michel Temer. A segunda razão: como advogado que atua na área, ele está seguro de que se trata do julgamento mais importante da Justiça Eleitoral no mundo. Mesmo assim, não estava diante da tevê quando o ministro Gilmar Mendes contou que seu colega no STF, Celso de Melo, havia elogiado e recomendado a leitura do parecer. O próprio Gilmar Mendes acabou se apoiando na tese levantada pelo “doutor Casagrande”, como o presidente da corte chamou o curitibano, que por aqui é chamado de “doutor Pereira”.
Aos 46 anos, formado pela PUCPR e doutor em Direito Processual pela UFPR, Luiz Fernando Casagrande Pereira está convencido de que sua participação no julgamento foi resultado de “uma feliz coincidência que não vai acontecer mais”: o maior caso da Justiça Eleitoral foi resolvido por um tema de Processo Civil. “Minhas formações se cruzaram em um caso tão importante. Foi um momento feliz. Provavelmente não vou viver outro como esse”, disse ele durante entrevista à Ideias realizada na impressionante Villa Sophia, o casarão do século XIX onde está instalado o escritório Vernalha Guimarães & Pereira, em Curitiba.
Ideias – Você deu dois pareceres para o advogado de defesa do presidente Temer (o curitibano Gustavo Bonini Guedes). Como eles foram usados?
Luiz Fernando Pereira – Em um dos tópicos do primeiro parecer, de abril de 2016, eu disse que o objeto da ação não podia ser ampliado. Mas este não era o tema central. Depois disso o Herman Benjamim, que assumiu o caso, começou a tomar iniciativas probatórias, começou a ampliar o objeto e por fim incluiu as delações da Odebrecht e dos marqueteiros João Santana e Monica Moura. Com isso aquele meu argumento que era relativamente importante passou a ser central porque se fossem considerados esses dados novos seria difícil a ação ser julgada improcedente. Aí, em abril de 2017, ou seja, pouco antes do julgamento, me pediram outro parecer que aprofundasse aquele ponto.
E aquele ponto acabou se tornando crucial para a defesa e para os ministros que votaram contra a cassação.
Não que eu imaginasse isso em 2016, mas o argumento que foi discutido é esse. Se você ler a imprensa de 2016 verá que a defesa de Temer insistia na separação da chapa, em condenar a Dilma e livrar o Temer. Mas isso nem foi discutido no julgamento no TSE. Lá tudo girou em torno de ampliar ou não o objeto da ação. O fato é que isto estava no parecer. Eu desenvolvi aquilo fazendo, como o Gilmar Mendes citou, uma análise do Direito Comparado, levantando como funciona em outros países que também têm prazos [para ações de cassação de mandato] e lembrando que por haver esse prazo é que não pode ampliar. Há uma relação entra estabilidade e democracia. A cassação de Temer seria muito ruim para a democracia porque sinalizaria aos juízes eleitorais que não tem mais prazo para propor ação. Todo mundo poderia propor uma ação de narrativa vazia e ir preenchendo depois com os fatos revelados ao longo do tempo.
Qual tem sido a repercussão do resultado do julgamento para você?
Eu diria que os elogios são públicos e as críticas não. Então eu tenho certeza de que estou sendo criticado sem saber (risos). Claro que a decisão num primeiro momento é impopular porque é mal compreendida. Há uma ideia de que os ministros foram cooptados. Mas se o Temer tivesse sido cassado com base na ampliação do objeto seria um desastre para a democracia daqui para frente. O resultado prático disso seria que em toda eleição o perdedor apresentaria um processo sem nenhuma acusação e ficaria esperando que fatos surgissem ao longo do mandato.
Fatos que poderiam ser encaixados no processo para justificar a cassação?
Isso, que poderiam ser embutidos. Quando a Constituição de 88 foi elaborada, a comissão de notáveis sugeriu seis meses e o prazo que prevaleceu foi 15 dias, que está de acordo com a maioria das democracias. Foi isso que eu mostrei no parecer. O prazo é curto aqui no Brasil e no mundo inteiro. Se quiser mudar isso, tem que mudar a Constituição.
O julgamento ocorreu 2 anos e meio depois da apresentação da ação. Dentro desse prazo alongado surgiram fatos novos e a própria opinião pública trabalha com informações novas. O Tribunal julga com base na ação lá de trás, mas a sociedade convive com informações de agora. Isso não torna a ação irrelevante?
Você tem razão. Esse é o ponto que cria a distância entre a correção da decisão do Tribunal e a percepção da população.
Quer dizer que se o julgamento tivesse ocorrido lá atrás não haveria o desconforto?
Claro. A ação tem que ser julgada em no máximo um ano em todas as instâncias. Lá no TSE eles são instância única. Deveriam ter julgado em um ano. Foi lastimável que o TSE tenha demorado tanto. O fato de ter demorado gerou o que gerou. Os fatos foram sendo revelados e havia a angústia de não poder incluí-los no processo.
É compreensível a dificuldade da sociedade para entender que fatos que hoje são comprovados e que mostram o uso de dinheiro irregular na campanha da chama Dilma-Temer não tenham sido levados em conta, não é?
É isso mesmo. Note que a delação da Odebrecht falou do Aécio Neves também. Por que que não propuseram ação contra o Aécio Neves para torná-lo inelegível em função da fraude de caixa 2 na campanha dele? Por que já havia passado o prazo. Mas por que contra a Dilma e o Temer usaram esses fatos? Porque eles foram embutidos em uma ação que tratava de outra coisa. Se a ação contra a chapa Dilma-Temer tivesse sido julgada em 6 meses, como deveria, quando informações novas foram levantadas ninguém cogitaria entrar com uma ação eleitoral. A chapa iria responder na área criminal. Mas como a ação ainda estava tramitando, foi possível embutir os casos que foram sendo descobertos e, ao embuti-los, gerou-se incompreensão. O que não está sendo dito é que o fato do TSE não considerar esses dados para fins de cassação de mandato não significa que ficarão impunes. Esses mesmos fatos vão ser tratados no ambiente criminal. Em todos os países se faz assim: se você conseguir comprovar os fatos dentro do prazo previsto pela lei eleitoral, você cassa o mandato. Se não, não cassa mais e trata do ponto de vista criminal. Isso porque eu não posso deixar o mandato em aberto por muito tempo, o que seria ruim para a democracia. Essa foi uma opção que a maioria dos países do mundo fez e foi a opção que o Brasil fez.
O relatório do Herman Benjamin se distanciou muito da ação inicial?
A ação passou por uma metamorfose. Tanto é que o Aécio Neves havia dito que a ação inicial era só “para encher o saco”, para importunar, o que foi uma manifestação depreciativa do papel da Justiça, e depois a ação foi robustecida. A ação do Herman é a ação do Aécio vezes 100. Só que a Constituição diz que a ação que podia ser julgada era a do Aécio. O resto é do Herman, que é bem feito, mas fora do prazo.
O que o ministro Herman trouxe não poderia ser entendido como um detalhamento do que Aécio Neves acusou na ação?
Alguns argumentam assim. O Aécio disse que o dinheiro da chapa Dilma-Temer vinha da Petrobras. Ouviram 25 testemunhas sobre isso. As 25 negaram, inclusive Marcelo Odebrecht, Monica Moura e João Santana. Então aquilo não foi provado. Foram lançadas outras acusações muito mais graves, mas fora do prazo. Admiti-las fora do prazo para resolver uma crise política… Será que resolve? Você não pode casuisticamente, por conta de uma crise política constitucional, deixar de lado a aplicação da Constituição porque a partir daí os juízes de primeira instância e os desembargadores vão achar que podem fazer isso. Por mais dolorido que seja mantê-lo, tem que julgar o caso concreto com base nas regras atuais.
O ministro Gilmar Mendes disse que a sociedade estava esperando que o TSE resolvesse a crise. Você acha que era isso?
Em alguma medida acho que é. Depois da delação da JBS começou a se esperar mais fortemente que o TSE cassasse a chapa. Mas o TSE não pode julgar com base em pesquisa de opinião. Isso seria a antítese do papel da Justiça e da Justiça eleitoral. Aí acaba o Estado Democrático de Direito. Você tem que julgar com os elementos do caso concreto, com os parâmetros que a lei e a Constituição oferecem. O julgamento tem que ser o mesmo independente do momento que o país vive. Outro dia vi na tevê o ministro Gilson Dipp dizendo que o julgamento tem uma parcela política. Não é assim! O julgamento ou é técnico ou não é julgamento.
O que você achou da declaração do ministro Luiz Fux de que ele votou pensando no melhor no país?
Acho que foi uma declaração infeliz. Quem pode dizer que faz o que é melhor para o Brasil é o Executivo, o Lesgislativo, que se elegem para isso e aí podem traduzir a vontade popular nas suas decisões. Até custo a acreditar que o ministro Fux tenha dito exatamente isso. Uma vez o ministro Joaquim Barbosa disse ao ministro Gilmar Mendes que ele tinha que sair às ruas para definir como votar no Supremo. Aquilo pode parecer simpático perante a opinião pública que não conhece a fundo o papel constitucional do Judiciário, mas é um equívoco. Todos queriam que o Temer fosse cassado mesmo que a Constituição estabeleça o prazo de 15 dias para apresentação de elementos dentro da ação. Então, como a maioria da população quer a cassação, eu deixo de lado a Constituição? Está errado.
Mas a declaração do Fux deixa tudo mais confuso diante da sociedade porque demonstra que o juiz vê uma opção de de tomar partido.
Por isso que custo a acreditar que ele tenha dito exatamente isso. Ele é muito preparado.
Ali no tribunal havia questões pessoais aparecendo, personalidades se revelando. Isso não gerava confusões?
Veja, o Brasil tem a maior Justiça Eleitoral do mundo quantitativa e qualitativamente. Nós somos a segunda maior democracia do mundo e descobrimos o resultado de uma eleição em poucas horas. Além disso é o Judiciário mais intervencionista do mundo, ninguém cassa tantos mandatos como a Justiça Eleitoral brasileira. Nós estávamos naquele momento no julgamento mais importante da Justiça Eleitoral mais importante do mundo. Pode parecer megalomaníaco, mas eu conheço Direito Comparado e posso dizer que foi o julgamento mais importante da história da Justiça Eleitoral no mundo. Evidente que há muita vaidade envolvida. Eram humanos que estavam julgando, então a posição, o argumento, o contra-argumento não é colocado sem um grau razoável de vaidade.
Falando desse gigantismo da Justiça eleitoral, isso se justifica? O que tem de bom e de ruim nisso?
Eu gosto muito da Justiça Eleitoral brasileira, que é muito rápida, é modelo para outros países. Acho que as Justiças eleitorais de outros países vão evoluir para ter o protagonismo que existe no Brasil. É que o brasileiro tem a síndrome do vira-lata, como dizia Nelson Rodrigues, e não acredita que seja o melhor nem em cuspe à distância. Mas pode ser que nós sejamos os melhores em algumas coisas, sim. Tanto é que o Brasil é copiado mundo afora, requisitado para acompanhar eleições, consultado sobre seu modelo jurisdicional.
É necessário que a Justiça Eleitoral seja tão grande e intervencionista?
Talvez pudesse ser um pouco menor e menos intervencionista. Mas eu diria que é na sintonia fina que eu ajustaria isso. A estrutura e as bases fundamentais da Justiça Eleitoral são apropriadas.
Depois do julgamento houve quem dissesse que nem deveria existir Justiça Eleitoral. O que você acha disso?
Antes quem fazia o controle de lisura do processo era o Congresso Nacional. Era o processo de verificação de poderes, como é nos Estados Unidos, na Itália, na Bélgica. Você trocaria a Justiça Eleitoral pelo Congresso Nacional para essa tarefa? Você entregaria a última palavra sobre a lisura do processo eleitoral para um Congresso que até há pouco tempo era comandado pelo Eduardo Cunha?
O que motivou essa evolução da Justiça Eleitoral no Brasil?
A Justiça Eleitoral existe no Brasil desde 32, mas era uma Justiça Eleitoral muito reativa. As cassações de mandato eram raríssimas. O que mudou isso foi a gestão do Nelson Jobim no TSE. O Jobim começou a aumentar o número de cassações de mandato por compra de votos. Originalmente era uma campanha da CNBB para combater a compra de votos e ele mudou a jurisprudência facilitando a cassação de mandatos. Isso foi em 99. Antes qualquer advogado podia atuar em Direito eleitoral porque ninguém era cassado. De repente muitos começaram a ser cassados: deputados, governadores, prefeitos. Isso aumentou a importância da matéria e começou um círculo virtuoso.
Então a Justiça Eleitoral cresceu a partir de um crime que hoje é bem menos frequente?
E se hoje é assim, se não há tanta compra de votos como havia até os anos 90, é por causa da ação da Justiça Eleitoral. Hoje, se é detectada a compra de um único voto, a candidatura é cassada. Houve mil cassações de mandatos no Brasil nos últimos 15 anos.
O ministro Gilmar Mendes afirmou ao jornal Folha de São Paulo que o ministro Herman Benjamin teve o “constrangimento” de não citar o nome de Dilma Roussef: “Talvez porque ele tenha sido nomeado pelo PT e não queria falar disto. E é até uma pergunta válida, né? Qual teria sido o posicionamento desses ministros [Herman e Rosa Weber, também indicada na gestão do PT] se estivesse presente ali [a possibilidade de se cassar] a Dilma?”
Acho que foi uma resposta infeliz [de Gilmar Mendes] porque põe em dúvida a independência dos ministros. E desconsidera um aspecto do voto do Herman e do voto da Rosa. Se o voto deles tivesse prevalecido, a Dilma teria ficado inelegível por 8 anos e como ela tem quase 70, seria uma inelegibilidade vitalícia. E ela quer ser candidata. Se Herman e Rosa quisessem agradar a Dilma teriam votado pela improcedência.
Dois ministros que participaram do julgamento haviam sido nomeados pelo presidente Temer recentemente. Você vê algum perigo nisso?
Veja, em quase todo país é assim. Se não é indicado pelo presidente é pelo Congresso, então sempre tem em certa medida um beija-mão. Adaptando a frase de Churchill sobre a democracia, esse sistema é o pior à exceção de todos os outros. Mas se a gente disser que o fato de ser indicado por esse ou aquele compromete, então estaremos dizendo que compromete o Judiciário inteiro. O Gilmar Mendes foi indicado pelo PSDB, que era o autor da ação. O Joaquim Barbosa foi indicado pelo PT e o PT não está muito contente com ele.
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