Quem recorda é Josias de Souza. Ao desempatar em favor dos condenados a votação em que o STF decidiu por 6 a 5 reabrir o julgamento de 12 mensaleiros, o ministro Celso de Mello tomou distância das ruas.
“Os julgamentos do STF, para que sejam imparciais, isentos e independentes não podem expor-se a pressões externas como aquelas resultantes do clamor popular e da pressão das multidões”, disse ele. “Sob pena de completa subversão do regime constitucional dos direitos e garantias individuais.”
Esse Celso de Mello que desafia as multidões para resguardar direitos individuais não orna com o Celso de Mello retratado nas páginas de ‘Código da Vida’ —um personagem capaz de desprover uma petição que considera correta só para não corroborar uma notícia de jornal.
O livro que exibe esse Celso de Mello fora da curva é de 2007. Escreveu-o o jurista Saulo Ramos, ex-consultor jurídico e ex-ministro da Justiça do governo de José Sarney.
O autor do voto de minerva que tornou admissíveis os embargos infringentes é mencionado em duas passagens do livro. Numa, Saulo conta como articulou junto a Sarney para que Celso de Mello, seu subordinado na consultoria jurídica do Planalto, fosse guindado ao posto de ministro do STF. Noutra, o autor revela episódio que o fez romper relações com o ex-pupilo.
Ao deixar a Presidência da República, Sarney resolveu candidatar-se ao Senado. O PMDB negou-lhe a legenda no Maranhão. Para driblar o veto, ele decidiu concorrer pelo Amapá. Os adversários impugnaram a candidatura. E o caso subiu ao Supremo. Num telefonema a Saulo, Celso de Mello considerou “indiscutível” o direito de Sarney à candidatura, já que a transferência de domicílio ocorrera dentro do prazo legal.
Sorteado para relatar o processo, Marco Aurélio Mello concedeu no mesmo dia uma liminar favorável à manutenção da candidatura de Sarney pelo Amapá. O caso escalou o plenário do tribunal. Sarney prevaleceu no julgamento do mérito. Para surpresa de Saulo, Celso de Mello votou pela cassação da candidatura. A meia-volta deixou-o embatucado. A explicação viria num novo telefonema do dono do voto. O diálogo vai reproduzido abaixo tal como se encontra no livro:
— Doutor Saulo, o senhor deve ter estranhado o meu voto no caso do presidente.
— Claro! O que deu em você?
— É que a Folha de S.Paulo, na véspera da votaçãoo, noticiou a afirmação de que o presidente Sarney tinha os votos certos dos ministros que enumerou e citou meu nome como um deles. Quando chegou minha vez de votar, o presidente já estava vitorioso pelo número de votos a seu favor. Não precisava mais do meu. Votei contra para desmentir a Folha de S.Paulo. Mas fique tranquilo. Se meu voto fosse decisivo, eu teria votado a favor do presidente.
— Espere um pouco. Deixe-me ver se compreendi bem. Você votou contra o Sarney porque a Folha de S.Paulo noticiou que você votaria a favor?
— Sim.
— E se o Sarney já não houvesse ganhado, quando chegou sua vez de votar, você, nesse caso, votaria a favor dele?
— Exatamente. O senhor entendeu?
— Entendi. Entendi que você é um juiz de merda.
Saulo conta que bateu o telefone e nunca mais dirigiu a palavra a Celso de Mello. Morreu em 28 de abril de 2013 sem que o livro escrito cinco anos antes merecesse nenhum desmentido público do neodesafeto. Por ora, os dois Celsos —o que desafia as multidões e o que treme ante uma notícia de jornal— continuam coabitando o mesmo corpo.