Flagrado em diálogos comprometedores com um doleiro, o deputado André Vargas ameaça envolver no escândalo um ex-ministro (Alexandre Padilha), um ministro (Paulo Bernardo) e uma senadora (Gleisi Hoffmann)
Daniel Pereira e Robson Bonin, Veja
Foi demais até para os padrões éticos de um partido cuja antiga cúpula cumpre pena na penitenciária da Papuda, em Brasília. Depois de Veja revelar que o deputado André Vargas se associara ao doleiro Alberto Youssef para enriquecer à custa de contratos fraudulentos com o governo, o PT deu um ultimato ao parlamentar: ou ele renunciava ao mandato ou seria expulso da legenda. A ideia de puni-lo visava a conter a sangria política, prejudicial às candidaturas à reeleição da presidente Dilma Rousseff e de petistas graúdos a governos estaduais. Dizendo-se “acabado”, “abandonado” e “machucado”, Vargas pensou em sair de cena.
Em conversa com colegas de bancada, chorou muito e disse que renunciaria. Mas, em vez disso, deu início a um processo de resistência. Na segunda-feira, Vargas anunciou o pedido de licença, por sessenta dias, do cargo de deputado; na quarta-feira, abdicou da vice-presidência da Câmara. Mas já no dia seguinte avisou aos amigos que encurtará a licença e retomará o mandato parlamentar no próximo dia 21. Vargas fechou a semana certo de que não será cassado. Essa mudança de atitude tem um nome: chantagem.
Vargas, como gosta de repetir, é “um homem muito influente no partido”. Conhece como poucos as entranhas do PT e do governo. Especialista em táticas de guerrilha contra adversários, passou a usar essas armas contra figuras do primeiro escalão da República. A petistas, afirmou que, se não receber solidariedade, abrirá a caixa de ferramentas. Os primeiros alvos seriam o ministro Paulo Bernardo (Comunicações), a senadora Gleisi Hoffmann, ex-chefe da Casa Civil e candidata do PT ao governo do Paraná, e o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, concorrente petista ao governo de São Paulo. Vargas insinuou que Bernardo é beneficiário do propinoduto que opera na Petrobras.
O ministro, segundo o deputado, seria o intermediário de contratos entre o grupo Schahin, recorrente em escândalos petistas, e a petroleira. Bernardo teria recebido uma corretagem por isso, recolhida e repassada pelo “Beto”. É assim, com intimidade de sócio e amigo, que Vargas trata o doleiro Alberto Youssef, preso pela Polícia Federal sob a acusação de chefiar um esquema de lavagem de dinheiro que teria chegado a 10 bilhões de reais. Parte desse valor, como se revelou nas últimas semanas, são as propinas de negociatas na Petrobras.
Em depoimento ao Ministério Público, Marcos Valério, operador do mensalão preso desde novembro, disse que a construtora Schahin simulou uma prestação de serviços para a Petrobras. A empresa pagou por esse serviço de fantasia a pedido do governo Lula, que Vargas teria usado o dinheiro desembolsado para comprar o silêncio de um empresário que ameaçava envolver o ex-presidente e outros petistas estrelados no misterioso assassinato de Celso Daniel, prefeito de Santo André.
Nas conversas com deputados, Vargas também citou como algo que o PT não gostaria de ver revelado o caso da agência Heads Propaganda, do Paraná. “A Heads é esquema deles”, declarou Vargas a colegas de partido. “Eles” seriam a senadora Gleisi Hoffmann e o ministro das Comunicações. Na gestão Dilma, a agência tornou-se líder em verbas recebidas do governo. A escalada meteórica está sob investigação do Tribunal de Contas da União (TCU).
Procurados, Bernardo e Gleisi negaram participação no processo de contratação das empresas citadas pelo deputado. Já o grupo Schahin disse que seus executivos participaram apenas de encontros sociais com o ministro das Comunicações.
Amigos de Vargas retransmitiram as ameaças ao articulador político do governo, o ministro Ricardo Berzoini, e a Rui Falcão, presidente do PT. Acuado, o PT desistiu de abrir processo de expulsão, pelo menos até ouvir as explicações do deputado, que já responde a um processo no Conselho de Ética da Câmara. Para aumentar seu cacife junto aos companheiros, Vargas trabalha freneticamente na coleta e na organização de informações sobre o Ministério da Saúde.
Como Veja revelou na semana passada, Vargas e Youssef planejavam a “independência financeira” de ambos por meio de contratos firmados com a pasta. Os dois enriqueceriam fechando parcerias entre o ministério e a Labogen Química Fina e Biotecnologia, um laboratório de fachada de propriedade do doleiro. A meta da dupla era conseguir contratos de 150 milhões de reais. Mensagens captadas pela Polícia Federal mostram que Vargas e Youssef atuaram juntos para associar a Labogen ao gigante farmacêutico EMS. Quando a parceria foi formalizada, saiu o primeiro contrato, de 30 milhões de reais.
Publicamente, Vargas tenta manter-se coerente com o que disse ao plenário da Câmara há duas semanas: “Quero deixar bem claro que não participei, não agendei, não soube previamente nem acompanhei desdobramentos de nenhuma reunião no ministério a respeito de qualquer assunto relacionado a negócios da Labogen”. A realidade, no entanto, continua a discordar do palavrório do deputado. Por um especial instinto de preservação da instituição, os parlamentares, mostra a história recente, tendem a punir seus pares menos por seus delitos e mais por mentiras proferidas da tribuna. Forçar Vargas a renunciar ou mesmo cassar seu mandato são seguimentos bastante prováveis do caso. Suas mentiras ficaram ainda mais flagrantes depois que o Ministério da Saúde confirmou que Vargas pediu ao ministro Alexandre Padilha que os representantes da Labogen fossem recebidos.
Segundo o ministério, o pedido do deputado “seguiu o trâmite regular”, sendo enviado a Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos LabogenEstratégicos. Foi o secretário quem determinou ao diretor Eduardo Jorge Oliveira que atendesse os representantes da Labogen. A reunião ocorreu em 24 de abril do ano passado. O próprio Padilha disse a Veja que fora procurado por Vargas para tratar da possibilidade de contratação da Labogen.
Não vai ser fácil para André Vargas sustentar que não mentiu a seus pares da tribuna. Além de ter sido desmentido oficialmente, é inegável para a policia que Vargas tinha linha direta com pelo menos cinco comparsas do doleiro preso no esquema de lavagem de dinheiro, sendo que Pedro Paulo Leoni Ramos e Mauro Boschiero eram os interlocutores mais frequentes.
Leoni Ramos e Boschiero estão à frente do fundo de investimentos GPI, que forneceu os recursos para a reforma das instalações da Labogen. Os depoimentos dos envolvidos à Polícia Federal detalham a farsa montada para engambelar o Ministério da Saúde.
Veja foi a Indaiatuba, no interior de São Paulo, para conhecer a Labogen. Ali falou com o autónomo Leonardo Meirelles, laranja de Youssef que aparece como um dos donos do laboratório. Ele não só admitiu que se encontrou com Vargas para tratar do negócio no Ministério da Saúde como disse que foi o deputado quem abriu as portas dos gabinetes oficiais. Além de Meirelles, o frentista Esdra Ferreira é dono formal da Labogen. Ambos admitiram à polícia que, de início, a Labogen era uma “empresa de papel” que servia para maquiar as operações de câmbio de Youssef. Entre agosto e novembro de 2010, a Labogen, mesmo sem produzir um comprimido, faturou 79 milhões de reais. A lavanderia funcionava a pleno vapor, mas era chegada a hora de produzir mais, principalmente dinheiro. Foi quando a fome do rechonchudo Vargas se juntou à gula do doleiro. O deputado conseguiu que o diretor do Ministério da Saúde Eduardo Jorge Oliveira recebesse os representantes da Labogen para tratar da parceria.
Quando os laranjas de Youssef, neófltos em matéria de indústria farmacêutica, entraram na sala do diretor, encontraram um roteiro devidamente preparado para viabilizar o negócio. Oliveira começou a reunião dizendo que “o parceiro ideal para a Labogen seria a EMS” e que o produto “ideal para a parceria” seria o citrato de sildenafila, princípio ativo do Viagra, porque a EMS já produzia o medicamento. “A EMS seria uma empresa recomendada porque, segundo Eduardo Jorge Oliveira, para o processo ser realizado eram necessários testes de bioequivalência e estabilidade, e esses testes eram muito demorados, sendo que a EMS já os tinha feito”, relatou Pedro Argese, um dos diretores da Labogen, em depoimento à PF.
Além de um parceiro privado, a Labogen precisava de um parceiro público. Didático e prestativo, o diretor do ministério orientou os laranjas do doleiro a procurar o laboratório da Marinha, porque ele “já tinha parcerias efetivas” no mesmo modelo pleiteado pela Labogen. Superado mais um obstáculo, logo os técnicos do Ministério da Saúde foram inspecionar as instalações do futuro fornecedor. Em seu depoimento, o frentista Esdra Ferreira disse à polícia que foi encarregado de comprar as máquinas que formariam a planta do laboratório. Segundo ele, quase todos os equipamentos vistoriados e aprovados pelos técnicos da Saúde não passavam de carcaças de máquinas sucateadas, que ele havia comprado em cemitérios de equipamentos e mandado revestir de placas de alumínio para “dar a aparência de novas”. Um dos funcionários admitiu a armação: “As máquinas são apenas carcaças. Estão todas ocas”.
O laboratório tem oficialmente 24 funcionários. Na semana passada, apenas três davam expediente. Os outros, por causa das prisões e dos salários atrasados, já haviam abandonado o emprego. Se não produzia um mísero medicamento, a sede da Labogen era palco de uma movimentação frenética. “Era um entra e sai de carro importado, Mercedes, BMW, Land Rover. Eles viviam em reuniões fechadas. De vez em quando, chegavam umas bolsas cheias de dinheiro. Bolos imensos de notas que eles usavam para pagar a reforma do laboratório. A carteira do seu Leonardo dava medo de ver. Era tão grossa, com tanto dinheiro, que não cabia no bolso”, relatou um funcionário sob a condição de anonimato.
Credenciada como parceira do Ministério da Saúde, a Labogen, segundo os depoimentos à polícia, planejava importar matéria-prima da China e repassá-la à EMS, que produziria o medicamento. A divisão do butim já estava definida: a EMS ficaria com 50% da receita obtida com as vendas. A outra metade cairia no bolso dos mentores da operação. São esses percentuais que justificam o otimismo do doleiro Youssef na mensagem enviada ao petista Vargas em 19 de setembro de 2013: “Cara, estou trabalhando, fica tranquilo. Acredite em mim. Você vai ver quanto isso vai valer… Tua independência financeira e nossa também, é claro…”.
Depois de revelada a troca de mensagens com o doleiro, Vargas enviou um emissário ao presídio onde Youssef está preso. Queria negociar o silêncio do “irmão” Beto.
Na semana passada, a Polícia Federal encontrou uma escuta na cela de Youssef, que, suspeita-se, foi colocada lá para que alguém soubesse o que ele conversava com advogados e colegas de cárcere. Há motivos de sobra para que vários políticos se empenhem em impedir que o doleiro, que teve atuação decisiva no propinoduto da Vargas-LabogenPetrobras, conte o que sabe. Foram essas razões que levaram a bancada governista a tratorar o pedido de criação de uma CPI da Petrobras no Senado.
Essa tropa de choque impediu, até agora, que a comissão parlamentar fosse instalada. De quebra, aprovou a realização de uma investigação não apenas sobre a estatal, mas sobre o cartel do metro em São Paulo e o Porto de Suape, em Pernambuco, como forma de fustigar os candidatos presidenciais da oposição, Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB). A ideia é embaralhar tudo para não investigar nada. Não é à toa que estão à frente dessa ofensiva os peemedebistas Renan Calheiros e Romero Jucá. Eles também são padrinhos políticos de Paulo Roberto Costa, o ex-diretor da Petrobras que foi preso junto com Youssef. Não faltará assunto na campanha eleitoral deste ano.
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