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Millôr desenhista, por Ruy Castro

Um dia perguntei a Millôr Fernandes quem viera primeiro, o escritor ou o desenhista, ou qual nele se revelara mais cedo. Ele disse: o desenhista. Fiquei surpreso porque, para mim, se Millôr nascera para escrever, o desenho parecia algo que ele tivera de aprender. Eu ainda não sabia o suficiente de André François, James Thurber e Saul Steinberg para entender que gênios do desenho, como eles, dispensam a linha reta, a limpeza, o retoque.

Millôr me contou que, em sua memória mais remota, nunca se viu sem desenhar, ao passo que se lembrava de quando começara a ler e a escrever. Donde seu instrumento primordial era o lápis, não a caneta. Não será surpresa se o mergulho em seu acervo gráfico, a cargo de Ivan Fernandes, revelar que o artista Millôr foi tão grande ou maior que o escritor.

Seja como for, é esta última faceta que estará no monumento em sua homenagem a se inaugurar hoje no Rio, a um ano de sua morte: um banco de calçada, projetado pelo arquiteto Jaime Lerner, em que a silhueta recortada de Millôr, traçada por Chico Caruso para lembrar “O Pensador” de Rodin, atravessa uma placa de aço e permite ver o mar e o pôr do sol.

O banco fica no recém-batizado largo do Millôr, junto à pedra do Arpoador, um espaço que ele pisou todos os dias, em seus 58 anos de Ipanema, depois de correr ou caminhar em marcha acelerada pela areia dura, como o atleta que também era.

Desenhista, pensador, atleta. Mas só agora percebo que dois presentes com que me honrou tinham a ver com desenho: uma coleção de sua revista “Pif-Paf” (os oito números originais, de 1964, não a edição fac-símile, de 2008) e o guache com que ilustrou um artigo que escreveu em 1999 sobre meu livro “Ela é Carioca – Uma Enciclopédia de Ipanema”, no qual seu verbete foi o mais difícil de fazer. Ele não cabia em verbetes.

via Folha de S.Paulo