José Serra
A deterioração da situação política na Venezuela, com todos os seus corolários – recrudescimento da repressão pelo ditador Nicolás Maduro, emigração em massa e conflitos entre Forças Armadas e civis venezuelanos, a um passo da nossa fronteira –, arrasta o Brasil (e a Colômbia) para focos de tensão crescente. Como já escrevi neste espaço, o conflito interno na Venezuela é uma circunstância que o Brasil não escolheu, mas que, cada vez mais, nos impõe dilemas especialmente difíceis, que devem ser tratados com muita cautela e pragmatismo.
Os desdobramentos mais recentes – como a tentativa de atravessar a fronteira no Brasil e na Colômbia com caminhões de ajuda humanitária – deslocam perigosamente nosso papel no conflito da esfera tipicamente diplomática para a antessala de uma ação propriamente militar. Na semana passada o governo de Maduro posicionou tanques próximo à nossa fronteira, dando sequência a um imbróglio preocupante.
Quando se sai do campo da diplomacia e se entra, ainda que tenuemente, na esfera bélica, as opções de recuo diminuem e a tendência a uma escalada temerária não pode nunca ser descartada. Em face da reação das Forças Armadas venezuelanas, ainda leais a Maduro, a entrada da ajuda humanitária fracassou. Esperava-se que a possibilidade dessa ajuda e o previsível rechaço de Maduro abrissem uma fenda na lealdade militar ao chefe venezuelano. Mas houve relativamente poucas deserções, a grande maioria de patentes baixas e médias. Os desertores cruzaram a fronteira com a Colômbia e alguns foram resgatados pela Polícia Federal brasileira. A manobra não deu certo – pareceu longe de ameaçar a estabilidade dos vínculos entre o governo e o Exército.
O que se poderia fazer a partir daí? Aumentar a pressão político-diplomática e, usando aparato bélico, impor a passagem de comboios com alimentos e remédios? Ou desistir da operação até que um virtual abalo do apoio dos militares a Maduro levasse à derrocada do seu regime? Ao que tudo indica, ficaremos na segunda opção. O que não deixará de ser um prudente recuo, bem-vindo, diga-se. Mas não melhor do que se estivéssemos cuidadosamente explorando outras opções de ação.
A lição que fica do episódio é que blefes não costumam produzir bons resultados nas relações internacionais, ainda mais se o adversário encurralado tem tudo a perder se não resistir. Por mais que Maduro e o chavismo tenham levado seu país à ruína, a sociedade venezuelana está ainda dividida. Essa divisão tem raízes históricas, especialmente pelo desprezo das elites, no passado, pela situação da grande maioria marginalizada. O apelo ideológico do “socialismo” chavista ainda sensibiliza boa parte dos venezuelanos. Embora essa parcela seja cada vez mais minoritária, ela permanece forte o suficiente para alimentar a instabilidade política mesmo depois de uma eventual queda de Maduro.
Outro fator complicador – e uma das grandes dificuldades para o desfecho pacífico de tiranias como a venezuelana – é o crescente envolvimento de autoridades, civis e militares, nas ações do regime ameaçado. Para elas, resistir à mudança é evitar a punição futura. Essa circunstância mostra quão essencial passa a ser a criação de salvaguardas e anistias para os possíveis derrotados, a fim de que o custo da transição não seja uma guerra civil aberta.
Nesse aspecto, o “presidente” interino Juan Guaidó – assim reconhecido por boa parte da comunidade internacional, incluindo o governo brasileiro – tem tido comportamento exemplar, exercendo uma inteligente política de atração de possíveis dissidentes do regime com ofertas de reconciliação.
Em vista dos enormes riscos que envolvem o Brasil, parece óbvio que qualquer atitude que possa desencadear uma escalada bélica deve ser rejeitada. Isso não significa, evidentemente, adotar uma postura passiva ou condescendente com Maduro e seu grupo. Há a possibilidade, por exemplo, de aumentar pressões externas mediante a suspensão de linhas de comércio com a Venezuela. Esse fechamento teria efeitos econômico-sociais adversos no país vizinho, mas seria uma opção menos dolorosa do que a de expor as pessoas a um conflito bélico em que o Brasil se envolvesse e cujos desdobramentos negativos seriam imponderáveis.
Tenhamos claro que a própria deterioração econômico-social da Venezuela levará, mais dia, menos dia, à ruptura dos militares com o regime de Maduro A hiperinflação abateu-se definitivamente sobre o país e a produção de petróleo, a única atividade econômica capaz de gerar divisas externas, está entrando em colapso. A inflação em fins de 2018 atingiu incríveis 80.000% ao ano, segundo estimativa do professor Steve Hanke, da Johns Hopkins University. Nos últimos cinco anos, a produção de petróleo na Venezuela caiu pela metade – de 3 milhões de barris diários para apenas 1,5 milhão! E cairá ainda mais, à medida que as sanções econômicas já impostas tornem mais precária a manutenção da infraestrutura produtiva. O PIB venezuelano vem declinando a taxas inéditas – uma verdadeira hecatombe econômica. Desde 2013 caiu 70%, medido em dólares. Somente em 2018 a queda foi de 18%!
Não há saída feliz possível para Maduro. E não deixa de ser exasperante assistir ao sofrimento dos venezuelanos prolongar-se no tempo. Infelizmente, nem tudo é possível em política, menos ainda em política internacional, em que o terreno é sempre mais movediço e imprevisível.
A declaração do Grupo de Lima – que reuniu nesta semana representantes de 13 Estados latino-americanos e o Canadá – foi correta. O tom do documento manteve a pressão diplomática, mas claramente afastou as veleidades bélicas que alguns setores parecem cultivar. O Brasil não tem história nem poderio para se tornar parte de uma polícia global. Devemos tomar posição, sim, mas sempre nos limites da diplomacia. Nosso histórico de autocontenção é um grande ativo, uma sábia tradição que não devemos abandonar.
Senador (PSDB-SP), Foi Ministro das Relações Exteriores
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