André Dib
Diario de Pernambuco
Buenos Aires, 15 de março de 1962. O então publicitário Joaquim Salvador Lavado, o Quino, tinha apenas 29 anos de idade quando deu forma à garotinha que, de tão impertinente, cruzou o ponto final dado pelo seu próprio criador.
Nascia Mafalda. Uma das maiores personagens das histórias em quadrinhos e uma das poucas a atingir o estrelato exclusivamente através de tirinhas, incialmente publicadas em jornais, espaço ideal para refletir sobre as questões políticas e sociais que tanto a incomodavam.
Por cinco décadas, dezenas de livros em diferentes idiomas multiplicaram suas indagações descabidas, que tanto importunam os que se sentem donos da verdade. Produzidas entre 1964-1973, um período curto, mas suficiente para eternizar a personagem e influenciar artistas e intelectuais de diferentes gerações. Não é difícil imaginá-la criticando a cobertura da TV sobre os conflitos da Síria, protestando pela liberdade na internet ou se indignando com o sucesso de Michel Teló.
Mafalda gosta de Beatles, critica a mídia, protege o irmão mais novo das “adultices”, defende a igualdade entre pais e filhos (“nos graduamos no mesmo dia”, diz), odeia sopa e tem uma amiga chamada Liberdade. Antes de ser argentina ou viver nos anos 1960, ela é uma humanista. Sua ingenuidade contestadora é visceral, espontânea. Ela é bem vinda – e necessária – em qualquer época ou cultura.
Entre os seus admiradores está o escritor Umberto Eco, que define Mafalda como “a heroína iracunda que rejeita o mundo assim como ele é, reivindicando o seu direito de continuar sendo uma menina que não quer se responsabilizar por um universo adulterado pelos pais”. No entanto, o pesquisador Paulo Ramos, em seu livro Bienvenido – um passeio pelos quadrinhos argentinos (Zarabatana, 2010), observa uma contradição na gênese da personagem, criada para uma loja de departamentos para promover as lavadoras Mansfield. Daí o “Mafalda”. A campanha nunca foi lançada e Mafalda só viria a público pela primeira vez em 1964.
Quino parou de desenhar a personagem três anos antes do início dos anos de chumbo na Argentina. “Possivelmente ela nunca teria chegado a ser adulta. Seria uma das desaparecidas”, disse o autor, em entrevista a um periódico argentino. Desde então, Quino vem produzindo uma obra monumental, que vai muito além da personagem. Trocou as tiras pelo cartum, gênero no qual é mestre. O movimento foi recíproco: Mafalda provou estar muito além do desejo de seu criador. Tornou-se personagem tão grande quanto os norte-americanos que a precedem (Peanuts) e sucedem (Calvin) ou a nossa Turma da Mônica. É possível comparar personagens tão diferentes?
“Há paralelos possíveis, sim”, diz Paulo Ramos. “Mônica é lida até hoje e é a personagem brasileira mais reconhecida, inclusive fora do país. Vale o mesmo para Mafalda. Charlie Brown trouxe a reflexão adulta para o universo das tiras, algo que Quino também faz. Calvin já é mais fantasioso e menos vinculado à realidade factual do que Mafalda”.
Duas garotas invocadas – A inevitável comparação entre Mafalda e Mônica, duas garotas invocadas, me levou a procurar o criador de uma delas para comentar o assunto. “Elas nasceram quase ao mesmo tempo”, diz Mauricio de Sousa. “Talvez na mesma maternidade sul-americana. Mas enquanto Mafalda enveredava para críticas sociais, Mônica nascia para divertir, entreter, sem dar importância ou conta do que estava acontecendo em sua volta. Aqui ou ali com uma história de mensagem; Mas Mafalda tinha um algo mais que me assustava. Ela mergulhava com propriedade nos temas políticos, falava de igual para igual com os leitores. E mandava mensagens firmes para os adultos. Admirei logo de cara o personagem”.
Um dos maiores talentos da HQ brasileira, Laerte Coutinho diz que Mafalda é um dos pontos luminosos do quadrinho mundial. “Sem Quino eu não seria nada do que sou”, diz o artista. “Conheci o trabalho do Quino em 1967. As tiras foram decisivas para me decidir enquanto profissional e para a ideia de humor que passou a me nortear. Numerosas tiras que eu produzi na vida são cópias das que li na Mafalda. Conheci o Quino, na década de 80, em Milão – quase caí duro de emoção. Disse a ele: ‘chupei muito o seu trabalho’. Não sei se fez sentido, ele agradeceu meio sem jeito”.
As tirinhas de Mafalda remetem à realidade da Argentina e especificidades de uma época. Como entender sua longevidade? Paulo Ramos que tudo começou na época, com o impacto que as tiras exerceram na Argentina. “Abertas à realidade do país e do mundo, elas trouxeram o noticiário para o humor das tiras. Isso exerceu e ainda exerce forte influência no que o país vizinho produziu desde então. Outro motivo foi a repercussão que parte dos quadrinhos argentinos tinha na Europa na década de 1960. Soma-se o fato de as tiras serem recuperadas, depois, na forma de antologias, o que permitiu a longevidade da produção. Por fim, nada disso se justificaria se a série não tivesse qualidade. É uma das melhores tiras já criadas no mundo”.
Laerte aponta outros motivos para Mafalda ter se tornado leitura obrigatória – no Brasil, a compilação Toda Mafalda (Martins Fontes, R$ 113) está na lista do PNBE, que leva o livro para as escolas públicas de todo o país. “Ela é muito atual, apesar de tratar de temas que estão muito localizados no tempo. Além disso, ela representa, assim como o Calvin de Bill Watterson, um exemplo de como um autor pode ter domínio sobre seus direitos sobre seu trabalho, começando-o e encerrando segundo seu interesse e não o da editora ou da indústria de entretenimento”.
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