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Luz a um problema sem resposta fácil

Misturando experiência pessoal com investigação erudita e mitológica, Vicente de Britto Pereira expõe dimensão de problema inconveniente

por Sandro Moser, na Gazeta do Povo

A resposta ao problema “álcool e criação” não está dada em manuais. A relação entre o homem e a bebida, de tão ampla, pode ser analisada por meio de várias abordagens: mitológica, histórica, sociológica, filosófica, artística ou psicanalítica.

Inegável que o uso e abuso de bebidas alcoólicas influenciou de maneira indelével a formação das civilizações através da história. Em que medida e com que consequências, é uma discussão difícil de concluir.

O alcoolismo é um assunto desagradável. Quem não é afetado diretamente pelo problema (ainda que seja quase impossível não olhar para a própria família e/ou para o núcleo de amigos sem identificar alguém que esteja bebendo demais) finge que o assunto não é com ele.

A outra parte da humanidade – os alcoólatras na ativa – não podem nem ouvir falar da questão. Não admitir, em seu íntimo, o problema é um dos sintomas recorrentes da doença, segundo a literatura médica especializada.

Assim, não é simples estudar esta que é uma das mais antigas manifestações humanas e sua relação com a cultura e com o processo civilizatório sem escorregar em preconceitos ou na simplificação das respostas para que pareçam únicas e definitivas.

O G Ideias coloca o tema em debate a partir do confronto entre dois livros de ensaios publicados neste mês.

Ambos, com o mérito de serem ambiciosos exames do problema à luz de alta bibliografia da filosofia e da psicanálise, têm linguagem e abordagens, às vezes, complementares e, em grande, parte, opostas.
O primeiro livro é Ensaios sobre a Embriaguez (Record), de Vicente de Britto Pereira, que procura analisar o discurso e a busca do alcoolista. Nesse caminho, o autor observa como o uso do álcool, de maneira sutil e especial, se relaciona com a criação artística.

O outro é O Último Copo (Record), do filósofo, sociólogo e psicanalista francobrasileiro Daniel Lins, que, com texto e pensamento expressos com fervor inebriado, desafia os tabus do tema ao arrepio de qualquer moralismo.

Começando pelo primeiro livro, em um tom sóbrio e equilibrado, Pereira tenta com muita pesquisa e alguma dose de experiência pessoal “entender o comportamento dessas pessoas que, no fundo, ao procurar um renascimento, encontram o espectro da morte”.

No ensaio que abre o volume, ele parte da constatação de que o consumo de bebidas alcoólicas tomou a proporção de uma epidemia, tanto pelo número de pessoas que atinge e por sua presença diária e constante, quanto por seu caráter de banalidade.

A trágica premissa é corroborada por números da Organização Mundial de Saúde (OMS), que avaliou, em 2012, que cerca de 2 bilhões de pessoas consomem álcool regularmente em todo o mundo.

Deste universo, um contingente expressivo (cerca de 12% da população adulta) terá problemas sérios de dependência e de uso nocivo de bebidas.

A partir dessa inconveniente verdade, Pereira estuda a relação do álcool com os processos sociais. O autor admite que não há como negar os efeitos positivos das drogas e do álcool em termos de relaxamento, liberação de certas amarras pessoais, de criação de outras realidades e em manifestações artísticas.

Ele não admite, porém, que a excelência dessas manifestações artísticas se deva a ingestões pesadas de álcool, mas, sim , ao talento natural dessas pessoas, “pois de outro modo seria muito fácil se tornar um grande artista”.

“Entretanto, temos que lamentar que uma boa parte desses artistas nos deixem apenas alguns lampejos de suas criações devido, em grande parte, ao seu estilo de vida e morte, não nos brindando, por exemplo, com o que nos legaram um Picasso ou um Matisse com suas longas vidas.”

Entrevista
Vicente de Britto Pereira, ensaísta
Um inimigo sutil, íntimo e dissimulado
A relação do homem com o álcool é histórica, mística e cultural, mas tomou outra proporção na Grécia Antiga. Como esta influência clássica mudou a relação do Ocidente com o álcool?
O ensaio sobre o vinho na Grécia Antiga, centrado na figura contraditória do deus Dionísio, teve como objetivo ressaltar a importância que a cultura desta bebida teve para a história do pensamento ocidental em várias de suas manifestações.
Procurei, de um lado, mostrar como o vinho estava intimamente associado à vida, a uma vida boa, e à natureza, mas que devia ser tratado com todo o respeito e temor.

E, por outro lado, apresentar a verdadeira face do denominado “deus do vinho” e das práticas orgásticas, por meio de seus aspectos civilizatórios que marcaram profundamente nossa cultura, como, por exemplo, a mediação entre os deuses e os homens através da tragédia grega.

Álcool e inteligência humana são falsos aliados?
Na minha experiência, posso tranquilamente afirmar que as pessoas que buscam drogas e álcool são em geral bem dotadas. Daí, inclusive, vem parte das dificuldades em entendê-los adequadamente.

Para o senhor beber é um ato narcisista?
O tratamento que dei à questão do narcisismo em um dos meus ensaios procura mostrar que podem existir relações estreitas entre a dependência do álcool e feridas narcisísticas ocorridas na infância, sempre procurando qualificar adequadamente os conceitos modernos sobre narcisismo, e não versões corriqueiras do fenômeno.

O senhor cita em um capítulo a “sutileza” do alcoolismo em relação a outras formas de toxicomania. Quais são essas singularidades e por que elas são especialmente perigosas?
A sutileza do alcoolismo reside basicamente em alguns aspectos, como o longo tempo de convívio crescente e íntimo com seu objeto de desejo, a criação de uma nova história pessoal, a redefinição de suas relações com o “outro” e, enfim, seu caráter dissimulador, negativo e estranho.

O capítulo final trata da recuperação “possível” do alcoólatra. O senhor apresenta alguns périplos de esperança. Há recuperação possível? O senhor tem essa experiência pessoal?
O livro está todo baseado em minhas experiências e em minhas inquietações intelectuais. As bebidas alcoólicas fizeram parte de minha vida durante muito tempo, e já não o fazem há quase dez anos.

Como o senhor acha que o Estado deve interferir na decisão de homens adultos a respeito do que eles desejam ingerir? Qual é o seu ponto de vista sobre o papel do poder público no controle do abuso de álcool?
Os objetivos principais da minha pesquisa dizem respeito ao entendimento do discurso e da busca do alcoolista. Não foi minha pretensão propor políticas públicas sobre a matéria, e muito menos caminhos para a recuperação de pessoas com problemas com o álcool. Mas, sem querer entrar nesta seara, tenho certeza de que o Estado não está cumprindo com suas funções sociais de prevenção e controle do maior problema de saúde pública que existe no país.
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Rebeldia e dor. Paixão e tragédia. Loucura e criação
“O álcool tem a idade da terra. Há uma cartografia detalhada da relação do álcool com as antigas ‘civilizações’, e suas reverberações nas práticas, estética e costumes modernos”, explica Daniel Lins.
Sem fazer diretamente uma apologia ao uso do álcool, nos ensaios de O Último Copo, o filósofo e sociólogo analisa a arrebatadora presença da bebida no campo acidentado da existência humana.

Ainda que admita o problema social e de saúde pública grave decorrente do abuso do álcool, Lins sustenta a ideia de que a alcoolemia não é apenas de uma doença passiva do corpo e do espírito, mas uma forma ativa de sair de um mundo opaco e servil.

“O álcool é um personagem singular que divide com a humanidade o peso da existência, as dores de um abandono social, as lágrimas perdidas de paixões e loucuras sem correspondência, e a tragédia provocada pelo próprio álcool”, observa.

Em abordagem audaciosa e instigante, ele questiona a parte que cabe ao álcool como elemento formador do processo civilizatório. Seja sob o ponto de vista religioso (“há de fato uma teologia do vinho como artefato divino”), seja, sobretudo, pela relação direta e perigosa que os licores produziram no campo da arte do pensamento.

No que toca, em especial, a associação fácil que se faz entre a qualidade de produção literária e filosófica e o consumo “industrial” de álcool, Lins analisa as razões da influência da tessitura social do universo do álcool nesse processo.

“Cada escritor é uma singularidade. No caso americano, em que uma série de escritores alcoólatras habita o panteão da literatura em um período decisivo para a história literária dos EUA, compartilham o gosto pronunciado pelo uísque e pelo gim, em diversos bares, nada garante que álcool seja uma peculiaridade dessa literatura”, diz.

Por outro lado, pondera o autor, “o bar, na história literária/intelectual francesa foi sumamente importante, não tanto como espaço de bebedeira ou alcoolismo, todavia como lugar de encontros, invenções e discussões infinitas e produtivas. Encontros amorosos, descoberta de desejos e gozos velados”.

Durante os períodos dadaísta e surrealista (décadas de 1910 e 1920), o bar serviu para encontros marcados de grandes personagens das artes, da literatura, do pensamento. Citando o escritor francês Georges Perros, ele afirma que “os bares são o oásis do Ocidente. No bar, a escrita chora pela ponta dos dedos; e cada um refaz o mundo à sua maneira”.

Rebeldia
Lins identifica ainda a faceta de uma certa forma de resistência e rebeldia do artista criador em sua associação ao álcool, que pode se transformar em uma forma filosoficamente válida de sacrifício.

“Ele resiste, pois, mesmo quando aparentemente não resiste. Na radicalidade de seu gesto, quem quer ‘outra vida’ para si não é ele, mas, salvo exceção, as carpideiras, militantes de um realismo social, capitães-mores do alcoólatra. O álcool e o sacrifício são necessários: aceitar entrar nessa ‘alguma coisa’ é também consentir em não sair ileso.”

Esta vertiginosa relação entre álcool e criatividade é rechaçada pelo jornalista Ruy Castro, um dos intelectuais brasileiros que fala mais abertamente sobre sua condição de dependente químico em recuperação. “É falso. Não existe qualquer relação entre uso de drogas e criatividade”, diz.

Castro lamenta que, em muitos casos, alguns artistas sejam mais lembrados por um falso caráter de heroísmo, por um papel de suposta “ rebeldia” que assumem em razão de sua dependência, e não por sua obra.

“Esse tipo de pensamento, que foi a base da contracultura, mostrou um resultado catastrófico na vida contemporânea. Essas pessoas que eram geniais usando drogas seriam muito mais se não tivessem usado”, afirma Castro.

Entrevista
Daniel Lins, filósofo, sociólogo e psicanalista
Arrebatamento, embriaguez e o “sob controle”
O álcool é aliado da inteligência e da criatividade humana?
Não afirmaria tão radical sentença. Beber é se inscrever em linhas minoritárias, sempre em movimento. Trata-se de singularidades. Em alguns casos, porém, e não são poucos, o álcool é sim amigo da inteligência e da criatividade humana.

Para Marguerite Duras, a obra amadurece no álcool. O álcool substitui o sopro inspiratório dos deuses e das musas. “Quando um escritor entra em pane total de imaginação, há pouca chance de que se volte para Deus, que faça uma prece: ele abre uma garrafa.” Arthur Rimbaud se deixa infiltrar pelo álcool. Embora tenha plena consciência de seus malefícios, sabe que o vinho provoca o arrebatamento do qual ele precisa tanto: o êxtase, pois, como o rapto do amor.

Francis Bacon pintava muitas vezes biritado, numa peculiar sinfonia em quatro movimentos: beber, cair, levantar, pintar… Pintar para ele era se embriagar: “Eu sou quase um alcoólatra, meu trabalho é o reflexo de minha vida”.

O seu livro faz uma observação ousada da relação entre álcool e cultura à luz da filosofia, deixando de lado os moralismos…
Não curto muito a noção de cultura que é, de fato, um conceito reacionário. A “cultura” é a verdade do espírito conformista, preguiçoso, ufanista, filho da moral e do ressentimento. Ora, a filosofia do álcool, que tenho elaborado, trabalha com a realidade, algo que nada tem a ver com a verdade de cada um, com o dogma de todos.

A verdade não suporta o teste da realidade, do real. A verdade discrimina. Real, realidade estão sempre por ser reinventados. A realidade, ao contrário da verdade, é um pensamento andarilho, cigano, aberto aos encontros, aos saberes e sabores da embriaguez, até da embriaguez abstêmia. Embriagar-se com um copo d’água. Por que não?

O senhor situa o alcoólatra em uma posição de rebeldia que não se contenta nem com o real nem com o imaginário. Estaria no álcool uma libertação para a verdadeira transcendência?

Não. Não creio. O álcool não é um ideal nem uma transcendência. O álcool é pagão, ateu, movediço… Errante. Louco, como todo poeta. Loucura, pois, como uma lucidez líquida… Trágica. Artista de sua própria arte.

A transcendência é ainda uma produção da verdade verdadeira. Daquele que espera para esperar menos… O alcoólatra não espera… Não tem ídolos, salvo a garrafa ou as alegrias instantâneas que, mescladas a euforia, rápida como uma masturbação, encontra em seus caminhos pedras e sangue coagulado.

Como se dá a relação entre álcool e suicídio?
Dissemos que o alcoólatra resiste. Ele é, todavia, um ativista sem militância nem partido. Ele resiste, inclusive, ao se dar à morte. O suicídio é ainda o suicídio do álcool, do porre, da santa birita. Se ele, porém, não se suicida, não é porque teme a morte.

Não haveria, porém, um suicídio sem morte biológica? Um suicídio da calma, encarnado em alguns momentos, potente nas declarações de Jim Morrison, da banda The Doors? “Ficar bêbado… você está totalmente sob controle, até certo ponto. É sua escolha, toda vez que toma uma dose. Você tem muitas pequenas escolhas. É a diferença entre o suicídio e uma entrega aos poucos.”