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LINHA DE IMPASSE

ANDRÉ SINGER

"Linha de Passe" desenha um fracasso do conjunto da sociedade. A exasperação do roteiro reflete um país de feições horríveis

"LINHA DE passe", de Walter Salles e Daniela Thomas, que estreou no último fim de semana, cumpre a função aparente de lembrar ao topo da pirâmide como sobrevive (?) a base metropolitana dos brasileiros. Dado o tamanho da desigualdade entre os estratos no Brasil, quem habita as esferas superiores pode não saber o que se passa a poucos metros de sua casa. Os condomínios fechados, os muros eletrificados e os carros blindados encerram a classe média alta numa bolha cuja órbita mental está mais perto de Miami do que do Capão Redondo.

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LINHA DE IMPASSE

Linha de impasse
ANDRÉ SINGER

"Linha de Passe" desenha um fracasso do conjunto da sociedade. A exasperação do roteiro reflete um país de feições horríveis

"LINHA DE passe", de Walter Salles e Daniela Thomas, que estreou no último fim de semana, cumpre a função aparente de lembrar ao topo da pirâmide como sobrevive (?) a base metropolitana dos brasileiros. Dado o tamanho da desigualdade entre os estratos no Brasil, quem habita as esferas superiores pode não saber o que se passa a poucos metros de sua casa. Os condomínios fechados, os muros eletrificados e os carros blindados encerram a classe média alta numa bolha cuja órbita mental está mais perto de Miami do que do Capão Redondo.
Daí o efeito documental da película.
A ficção soa tão verdadeira que poderia ser um conjunto de depoimentos sobre o cotidiano na periferia de São Paulo. O resumo das experiências relatadas é simples: qualquer que seja o caminho tentado, para quem teve a "má sorte" de nascer pobre, é impossível escapar de um círculo de violência e humilhação.
O motoboy, apesar de correr riscos absurdos para aumentar a produtividade, não ganha o suficiente para as necessidades da família e opta pelo crime. O evangélico que adota rigorosa conduta ética não consegue mantê-la em meio aos assaltos e ao arbítrio patronal. O atleta promissor não pode seguir a carreira porque o sistema de seleção é corrupto. O pequeno aprendiz de motorista sai em missão suicida porque não agüenta a desagregação da família. A mãe batalhadora e honesta, mas prestes a ficar desempregada, termina a fita em meio às dores de um parto desesperançado.
Porém, para além das vicissitudes de cada trilha escolhida, o filme desenha os traços de um fracasso do conjunto da sociedade. A crescente exasperação que toma conta do roteiro, à medida que os personagens são detidos por uma invisível barreira que os impede de encontrar melhor destino, reflete um país de feições horríveis.
Ao relegar a maioria de seus membros a relações permanentemente brutais e desumanas, ele se constitui em um exemplo de anticivilização.
Para ficar em apenas um de múltiplos exemplos oferecidos pelos autores, note-se como as imagens das massas de jovens candidatos a futebolistas, sendo maltratados e espezinhados apenas por buscarem um lugar ao sol, lembram as prisões superlotadas com seus rituais macabros ou o embrutecedor treino de tropas que foi objeto de recente e polêmico tratamento cinematográfico. Enfim, a barbárie está na esquina. Basta querer enxergar e, mesmo que a parcela aquinhoada prefira virar o rosto, objetivamente o presente estado de coisas limita também a chance de realização humana dos bem-nascidos.
Embora "Linha de Passe" não revele algo inédito, contribui para repor a questão central do período, a de saber se ainda temos chance de produzir uma "virada" civilizatória ou se seremos obrigados a nos conformar com a barbárie transformada em sistema.
Haverá algum modo de romper a jaula de ferro em que o Brasil está preso, apesar dos avanços recentes?
Conseguiríamos promover em curto prazo as profundas mudanças necessárias para dar às maiorias a chance de uma existência digna e, assim, humanizar o conjunto de nossas relações? Ainda há tempo social para isso ou as formas em que estamos encarcerados já se tornaram inamovíveis?
As respostas dependem de uma avaliação de forças. Talvez como reflexo da despolitização geral, estão ausentes da obra as classes a quem interessa que o quadro siga como está, assim como as que se opõem a ele.
O inferno da periferia parece "natural", questão de "azar". Em nenhum momento se percebe os interesses que impedem o Estado de promover as ações necessárias para alterar o status quo de modo profundo. A gritaria neoliberal, que se eleva sempre que é aumentado o investimento social, fica invisível no argumento fílmico. A opção por manter um enorme exército de reserva sem perspectiva, enquanto os ricos privatizam a área em que residem, não se faz presente.
Se é fato que os dados mostram uma queda constante do desemprego e melhora na renda dos mais pobres no governo Lula, uma autêntica "virada" civilizatória dependeria de investimentos em outra proporção e de uma mobilização política dos "de baixo". Seria preciso gastar pesadamente na criação de frentes de trabalho, cooperativas de produção, auto-organizações de serviço comunitário para conseguir, em tempo concentrado, mostrar a existência de uma outra via para a nação. A barbárie, sedimentada em camadas geológicas na história brasileira, não será sacudida sem romper os nexos que a estão a transformar em peculiar e tenebroso modo de produção.

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ANDRÉ SINGER , 50, é professor do Departamento de Ciência Política da USP. Foi secretário de Redação da Folha e secretário de Imprensa e porta-voz da Presidência da República (governo Lula).