Cerveja, tribos, monumentos históricos e muito rock’n’roll. Isso é uma pincelada do que foi o Grito do Rock 2012 nas Ruínas São Francisco, recheadas de mistérios e palco de ótimos shows
por Laura Silva, especial para o Grito Rock 2012
As curiosas ruínas ficam no centro histórico de Curitiba, conhecido como Largo da Ordem, no bairro São Francisco. O nome oficial é “Largo Coronel Enéas”, homenagem ao coronel que foi deputado, vereador e presidente da câmara municipal de Curitiba. Segundo a Secretaria Municipal da Indústria, Comércio e Turismo, as Ruínas de São Francisco representam o início da construção da Igreja de São Francisco de Paula, que começou em 1809 e não foi mais acabada.
Lendas urbanas floreiam o local e trazem à tona histórias de passagens secretas, tesouro escondido e até mesmo a presença de Zulmiro, pirata fantasma e dono do tesouro, que costumaria assustar visitantes do local. Reza a lenda que existem diversos túneis que ligariam a construção inacabada a outros lugares da cidade, como o Colégio Estadual do Paraná e o Clube Garibaldi. A igreja está fechada para evitar a depredação. Porém ao lado dela há um anfiteatro ao ar livre, onde foram os shows abertos do Grito do Rock e também da Virada Cultural.
Em uma grande parte do Largo da Ordem não se passa mais de carro, é apenas para pedestres. Caminhando ao redor da Praça João Cândido, perto das ruínas, ou ao redor do famoso chafariz do “cavalo babão” (grande escultura de uma cabeça de cavalo, do qual sai água da boca) temos uma sensação muito agradável. A memória curitibana mistura os cheiros de comida da feirinha de domingo, os papos e gargalhadas dos bares que contornam a região e as cores e formas dos diversos monumentos históricos. Construções como a Igreja da Ordem, o Museu Paranaense, a Igreja do Rosário, a Casa Romário Martins, a Igreja Presbiteriana, a Sociedade Garibaldi, o Memorial da Cidade de Curitiba, o Museu de Arte Sacra, o Relógio das Flores e a Fonte da Memória permeiam o Lago da Ordem. Leia a seguir algumas opiniões de frequentadores do local.
Edivânia e Edson, casal empreendedor
Edivania Gomes Vasconcelos, 47, é casada com o empreendedor baiano Edson Gomes, 53. Os dois são sócios e foram um dos primeiros a abrir os famosos bares no Largo. Observando que o centro histórico era o point onde os jovens se encontravam, Edson resolveu abrir um botequinho pequeno, o Firefox, que desde então continua lá. O negócio fez tanto sucesso que o casal resolveu abrir ao lado o The Farm Bar. Recentemente planejam abrir mais um, na mesma região.
Eles contam que seus bares nunca foram explicitamente assaltados, mas que usuários de crack já levaram um ou outro maço de cigarro – e também garrafas de whisky – o que foi contornado com a segurança privada. “Sabe, houve uma reuniu com vários comerciantes para a gente discutir e fazer um projeto para melhorar a região. A união faz a força até para conseguir uma segurança privada mais barata. Não adianta só a gente querer que a segurança pública melhore, nós temos que nos virar e fazer alguma coisa”, conta Edivania, que apesar de pequenos contratempos, adora o Largo.
Fernanda Mendes, fã do Largo desde pequena
Fernanda Mendes, 33, administradora e 11 anos de casada com Thalys Peterson, 34, músico brasileiro que mora em Nova York, passou boa parte de sua adolescência no Largo, dos 14 aos 22 anos. “Há alguns anos aqui era um lugar underground de Curitiba, mais marginal. Agora vários prédios foram reformados, está tudo mais colorido, mais vivo”, observa a moça, que acabou de voltar de Nova York para fazer sua pós no Brasil e não deixa de visitar o Largo. “A nova geração tem outra cabeça, tirou a visão marginal daqui, virou um ponto turístico. Isso é bom, pois muita gente tinha até medo de vir no Largo da Ordem”, analisa.
Adepta das atividades culturais, ela conta que, tal como Curitiba, apesar da modernidade nova-iorquina, lá a concentração dos centros culturais também fica nos lugares históricos da cidade. Afirma que são nas regiões históricas que os nova-iorquinos realmente gostam de sair, como o Village e o Brooklin. “Numa época, grandes empreiteiras queriam demolir esses centros históricos de lá, mas a própria população não deixou. Essa nostalgia que mistura o novo com o antigo contagia”, observa. “A concentração cultural de Curitiba ficou reunida aqui no Largo da Ordem, sem perder seu lado boêmio. Poetas, músicos, cineastas se encontram por aqui”.
O centro histórico tem seus bares cheios todos os finais de semana. Os freqüentadores, em geral, percebem muita coisa boa. “O Largo é um lugar muito interessante e venho pelo lado boêmio”, conta Rodair Ziegler, 31, programador. A boemia mais intensa começa pela sexta-feira depois do horário comercial, quando o pessoal vai dar uma aliviada na rotina. “Aqui você acaba conhecendo várias pessoas e é ótimo vir depois do trabalho. Você vê de tudo: roqueiro, hippie, patricinha; todo mundo comemorando e bebendo junto”, disse Angélica Monteiro, 26, vendedora.
Pré-carnaval que é melhor que o oficial
O local inclusive é palco de muita cantoria, alegria e dança nas tardes dos quatro domingos que precedem o carnaval: são os Garibaldis e Sacis, bloco carnavalesco que toca marchinhas antigas e coloca toda a família a requebrar e a cantar no centro histórico. “Sempre frequentei o Largo pelo (bar) Ópera, Angar, Clorofox e pelo pré-carnaval, que acaba sendo melhor que o próprio carnaval”, anima-se Hemeli Rodrigues, 18.
O Bloco Pré-Carnavalesco Garibaldis e Sacis começou em 1998. Um grupo de amigos, foliões e artistas se reuniu em prol do evento, montou o bloco e hoje tudo cresceu, chegando a ter atual participação de 5 mil pessoas. A tentativa de resgatar o carnaval de rua e fazer as pessoas se unirem ao som de marchinhas nos domingos pré-carnavais deu muito certo. Edivania e Edson, o casal de sócios entrevistados, são a favor da comemoração e lembram que não é só o carnaval que move multidões nas ruas do Largo. A Virada Cultural também realiza todos os anos shows nas ruínas e atrai muitos jovens. “Nesses eventos o público nos bares aumenta 60%”, conta Edivania.
Seu João, flanelina há 30 anos
Comunicativo, vozeirão e conhecido por todos no Largo da Ordem. João Altamir, 49, é o guardador oficial de carros da região. Há 30 anos nesta profissão, ele é o mais velho da Rua Jaime Reis. “Adoro as pessoas daqui. E a soberania dessa profissão é viver livre, viver bem e tratar (os outros) bem”.
Seu João lida com o trabalho de maneira séria. “Eu nunca faço preço de carro para ninguém. Você trata bem as pessoas e elas voltam. Não bebo em serviço, é um negócio sério, é minha firma”, conta. Já perguntaram por que ele não vira locutor de rádio. “Quem não tem estudos e já passou dos 40 tem que se virar. Como sou educado e me dei bem nessa profissão, continuei. Não é o melhor trabalho do mundo, mas é um serviço honesto que dá para sobreviver”.
Nasceu em Bocaiúval do Sul. Ele é um dos sete filhos de Silvanira de Brito Santos, 75, índia caigangue e Joaquim Cordeiro dos Santos, 76, lenhador. Veio para Curitiba com a família para conhecer os estudos e o dinheiro. Estudou até a 8ª. série na Escola Adventista. Aos 21 anos começou a cuidar dos carros, pois estava desempregado.
Hoje ele mora no Tatuquara e pega três ônibus para chegar ao Largo, num percurso que dura em média 1 hora e meia. “Vale a pena vir até aqui, não tem outra maneira. E gosto de tudo! O que me encanta são as coisas antigas, históricas”.
Dona Zélia e seus teares
Dedicada, doce, comunicativa, de estatura baixa e muito ativa. Zéllia Scholz, 80, foi uma das primeiras artesãs da Feira de Arte e Artesanato do Largo da Ordem, evento que acontece todos os domingos no coração histórico da cidade. Ela conta que a feirinha começou em outras praças (Zacarias e Tiradentes) e por último se estabeleceu no Largo, por volta de 1973.
Casada com José Willie Scholz, radialista e administrador, Dona Zélia não agüentava ficar em casa. Mãe de sete rapazes (o último foi adotado, com muito carinho), ela trabalhava no Centro de Criatividade de Curitiba, dando curso de tecelagem primitiva. Quando a feirinha abriu no Largo, ela foi convidada a participar. Todos os domingos a simpática senhora estava lá com sua mesinha repleta de artesanato que ela mesma faz em casa – seu ateliê e sua casa se confundem.
Filha de Maria José, fiandeira de roca e de fuso e de Benedito Gomes Correira, criador de gado, veio de Minas Gerais para o Norte do Paraná na época do “desbravamento do norte” (quando se desmatava para plantar café e ocupar terras).
Aos 13 anos, ainda em Jacutinga, aprendeu com a avó a fazer baixeiros e pequenos tapetes de pura lã. Criativa, hoje faz de tudo – desde almofadas, cortinas e tapetes até roupas. Também é ela mesma que mistura ervas e frutas e assim tinge as lãs.
“Na feirinha tem trabalhos de todos os tipos. Curitiba nem existia direito, gente de outros estados que veio pra cá. Então os trabalhos manuais viraram uma mistura, algo bem interessante”, conta. Ela afirma que o público tem crescido bastante desde que a feirinha começou – segundo o Guia Turismo de Curitiba atualmente há uma média de 15 mil pessoas que percorrem as oito quadras onde estão mais de mil barracas.
Dona Zélia conta que antigamente a feirinha não era muito segura, mas que isso está melhorando. “Por mais que a gente sempre tenha que prestar atenção para não sumir nada”, acrescenta. Roupas, brinquedos, livros, pinturas, objetos de decoração, bolsas, bijus e comidinhas podem ser encontrados por lá. “No trabalho você expressa sua forma de vida. Lá na feira tem muita pessoa honesta, trabalhadora, que quer ter uma chance na vida. E tem muito artista também, que está lá vendendo como artesanato obra de arte”, analisa dona Zélia. Ela se olha na foto que registramos dela e comenta, sorridente: “dá para sentir que não é uma velha que tá aí, né? É uma mulher trabalhadora. Essa arte que eu aprendi é um prazer”.
O fluxo de cultura no Largo da Ordem é um fator social que precisa cada vez mais ser apoiado e cuidado pela população- e por todos os setores sociedade . A valorização e a injeção de recursos na cultura curitibana é uma medida essencial para a democrarização de espaços culturais como o Largo da Ordem e tantos outros espaços da cidade que podem ser ocupados.
O Grito Rock 2012 foi uma experiência única, que envolveu muito suor e trabalho colaborativo. Foram 8 shows gratuitos, durante um final de semana ora nublado, ora com muito sol, em clima de despedida do verão curitibano.
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