O juiz de garantias previsto em lei recente poderia ser um avanço nos países nórdicos. No Brasil, contudo, funcionará como uma quinta instância que aumentará a morosidade e a impunidade num sistema já lento e leniente em relação a crimes econômicos como a corrupção.
A ideia básica da proposta é que dois juízes atuem sucessivamente desde o começo da investigação de um crime até a sentença. O primeiro, que é o juiz de garantias, decide os pedidos da investigação e dá início ao processo. O segundo, juiz de instrução, colhe provas, como depoimentos, e entrega o veredito.
O objetivo da nova lei seria evitar que o magistrado que concedeu prisões ou buscas, formulando uma preconcepção da culpa do réu, julgue o caso. Isso porque experimentos apontaram que tendemos a dar mais valor para provas que confirmem nossas crenças preexistentes – é o “viés de confirmação”.
A tentativa de reforçar a imparcialidade dos juízes é um objetivo nobre. Contudo, trata-se de iniciativa que tem, de um lado, um preço alto e certo – o aumento de morosidade e da impunidade – e, de outro lado, um benefício duvidoso.
Vivemos em um tempo de injustiça institucionalizada, mas não me refiro ao possível impacto do viés de confirmação. Segundo Rui Barbosa, “justiça tardia nada mais é do que injustiça institucionalizada”. Nossa justiça criminal é bastante morosa, salvo quando os acusados estão presos.
A lentidão tem muitas causas. Somos virtualmente o único país com quatro instâncias judiciais. Em cada uma, toma tempo conhecer o processo e existem muitos recursos à disposição de quem puder pagá-los. Além disso, a prescrição, que é a impunidade decorrente da demora, e a possibilidade de prisão apenas ao fim de todo o percurso operam como incentivo para que réus protelem seus casos.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre a acusação e a sentença se passam em média 3 anos e 10 meses na Justiça estadual, onde tramitam mais de 90% dos casos criminais. Vão-se em média mais dez meses no tribunal de apelação e outros oito no Superior Tribunal de Justiça. O CNJ não apresenta dados do Supremo, mas supondo um tempo equivalente àquele do STJ e mais dois anos para a investigação, passam-se oito anos.
O cenário tende a ser pior no caso dos crimes do colarinho branco. Isso porque as investigações são bem mais complexas. Seguir o rastro do dinheiro, especialmente quando se depende da cooperação de outros países, pode demorar anos. Além disso, a tramitação rápida dos processos é mais difícil porque normalmente ela envolve um número maior de réus e um arsenal de recursos.
A criação do juiz de garantias intensificará a demora dos processos por duas razões. Primeiro, o juiz de instrução precisará reestudar um caso que já foi estudado pelo juiz de garantias. Quando se trata de todo o trabalho de uma vara, isso pode significar a adição de um ano na duração dos processos. Tomar conhecimento de apurações complexas toma meses. O retrabalho implica tempo, dinheiro e ineficiência.
A segunda razão é estrutural. Segundo dados do CNJ, um terço dos municípios têm apenas uma vara e quase um quinto das varas trabalha com apenas um magistrado. Muitas das varas com um só juiz estão distantes de outras unidades e a Justiça ainda não alcançou a informatização plena dos processos.
Isso significa que, em milhares de varas com um só juiz, o processo aguardará o deslocamento de um magistrado ou precisará ser constantemente remetido para outra comarca. Essas idas e vindas de juízes ou processos, de novo, agregam burocracias que custam recursos e demoram.
Para além da injustiça causada pela morosidade e impunidade relacionada, a criação do juiz de garantias aumentará as chances de anulação das operações – um outro modo pelo qual nosso sistema proporciona prodigamente impunidade.
Mesmo na ausência de violação clara à lei, a discordância razoável de pontos de vista pode conduzir à derrocada de investigações inteiras, como ocorreu nos casos Castelo de Areia, Boi Barrica, Satiagraha, Chacal, Suíça, Pôr do Sol e Diamante. Nessas operações, vários julgadores de tribunais inferiores tinham emitido decisões razoáveis reconhecendo a legalidade de decisões e provas. Contudo, a discordância de julgadores num tribunal superior foi fatal às investigações. Isso não significa que a corte superior estivesse certa. Como bem disse novamente Rui Barbosa, o Supremo não é infalível. Ele tem o “direito de errar por último”.
Nada disso ocorreria, por exemplo, nos Estados Unidos, por várias razões: há apenas três instâncias e a maior parte dos casos só passa por duas; os tribunais não revisam o caso inteiro, mas em diversas situações restringem sua análise a situações em que há abuso de discricionariedade judicial ou erro claro e convincente; por fim, a anulação de provas passa por um juízo de ponderação que toma em consideração seu potencial prejuízo para o interesse público.
Assim, a criação do juiz de garantias, que terá todas as decisões reapreciadas pelo juiz de instrução, adiciona uma quinta chance às quatro que o réu já tem para alcançar a anulação de seu caso com base em discordâncias razoáveis de pensamento – e, como diz o ditado, “cada cabeça, uma sentença”.
Portanto, o juiz de garantias amplia a morosidade e a impunidade. E isso acontece num sistema em que, segundo estudo de Carlos Higino e Ivo Gico Jr., apenas 3% dos casos comprovados de corrupção são punidos. Estão fora da conta os casos não comprovados ou nem sequer descobertos – a “cifra negra” da corrupção.
O juiz de garantias impõe um retrocesso ao direito fundamental de acusados e vítimas à duração razoável do processo; ao direito da sociedade a uma punição que funcione tempestivamente para proteger a vida e o patrimônio público; e ao direito da população a um serviço público judicial eficiente. Prejudica-se a confiança do brasileiro nas instituições e o rule of law, o império da lei.
O que a nova lei garante são esses retrocessos. Eles devem ser ponderados, é claro, junto com o reforço na imparcialidade que o juiz de garantias busca promover. Contudo, o benefício à imparcialidade não é claro e significativo. Com efeito, na fase de investigação, o juiz brasileiro não produz provas ativamente, mas apenas autoriza policiais e promotores a acessar dados protegidos por sigilo, em decisões preliminares e limitadas, que não fazem um exame exaustivo do caso.
Antes de aumentar morosidade e impunidade, é preciso realizar estudos que esclareçam se esse exame superficial que o juiz faz na investigação impacta – e o quanto impacta – a imparcialidade. Não há pesquisas que analisem a taxa de reversão de condenações quando juízes decidiram, ou não, medidas na fase de inquérito. Na Lava Jato, por exemplo, apesar de o ex-juiz federal Sergio Moro ter atuado nas investigações, absolveu mais de 20% dos réus. Quanto às condenações, não há contestação pública sobre sua consistência, com exceção das narrativas sobre um caso envolvendo figura política proeminente.
Além disso, a possibilidade de revisão dos casos pelo tribunal de apelação é suficiente. Essas cortes são demandadas por qualquer réu, em qualquer caso, para reavaliar todos os fatos, as provas e a lei. Assim, já eliminam qualquer viés de confirmação e asseguram a imparcialidade que a nova lei busca.
Por fim, chama a atenção a seletividade com que se pretende impor o juiz de garantias. Foi criado para a primeira instância, na esfera criminal, logo após uma atuação muito eficiente da Lava Jato e outras operações. Não se mostrou a mesma preocupação em relação à esfera cível e aos tribunais. Fica parecendo um basta à atuação eficiente de magistrados como Moro e Bretas contra corruptos poderosos. Parece uma reação do sistema na direção contrária à das Dez Medidas e das Novas Medidas Contra a Corrupção, que propugnavam maior celeridade e eficiência.
A proposta do juiz de garantias contrasta com as necessidades deixadas de lado pelo parlamento: diminuir o excesso de recursos e a morosidade, permitir a prisão após a segunda instância, restaurar a racionalidade do sistema de prescrição e de nulidades e acabar com o foro privilegiado.
O Supremo está analisando a constitucionalidade do juiz de garantias, que foi suspenso provisoriamente pelo ministro Luiz Fux. Contudo, diversos ministros do tribunal já se posicionaram favoravelmente à nova regra. Daí a importância de seu debate pela sociedade.
É importante impedir que o combate à corrupção ande várias casas para trás. Além de alterações da colaboração premiada e da lei de abuso, discutidas em artigos anteriores neste espaço, a nova regra de que o réu delatado deve falar por último também preocupa, pois amplia a demora de processos e gera risco de nulidades. Mas isso é assunto para o texto da próxima semana.
Deltan Dallagnol é procurador da República e coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato no Ministério Público Federal em Curitiba.
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