Jornal dispensa seu colunista e repórter sênior em atitude que choca leitores
“Foi fraudulenta e determinada por corrupção a concorrência pública, cujos resultados o governo divulgou ontem à noite, para construção da ferrovia Maranhão-Brasília (ou Norte-Sul): a Folha publicou os 18 vencedores, disfarçadamente, há cinco dias e antes de serem abertos, pela estatal Valec e pelo Ministério dos Transportes, os envelopes com as propostas concorrentes.”
Uma geração de leitores talvez se lembre do lide ou do “disfarçadamente”. Outras não, mas sabem que o crédito que encimava o texto “Concorrência da ferrovia Norte-Sul foi uma farsa”, publicado em 13 de maio de 1987, era “Janio de Freitas, colunista da Folha”. Colunista é repórter ou deveria sê-lo em espírito. A Folha tem muitos, e a maioria não é. Agora tem um a menos. Janio, o colunista e repórter sênior deste jornal por excelência, foi dispensado na quinta-feira (15), após 42 anos de casa.
A estratégia de publicar dias antes o resultado de uma licitação no meio das páginas de classificados é apenas um de muitos lances brilhantes de uma carreira longeva, celebrada por colegas e admiradores nas redes sociais nos últimos dias. Reformador de jornais e do jornalismo nacional, talvez apenas um ex-correspondente de F1 se lembrará de reputá-lo também como especialista de esporte a motor.
O volume das homenagens equivale ou, melhor, é superado pelo das críticas à Folha. Para muitos leitores e profissionais da área, Janio foi cortado por razões ideológicas. Impressão galvanizada pelo corte simultâneo das colunas de Gregorio Duvivier e Marilene Felinto. Ao lembrar que há 20 anos saiu do jornal por decisão própria, a escritora escreveu em seu último artigo: “Agora a decisão é deles, pelo meu rótulo de esquerdista. Talvez queiram limpar o ambiente para a pura ‘neutralidade’ de opiniões sobre política”.
Deixaram o jornal também Atila Iamarino, Gerson Salvador, Hélio Beltrão, Henrique Gomes, Jaime Spitzcovsky, Karla Monteiro, Leandro Narloch e Maria Homem, segundo a Direção de Redação. Beltrão está na conta, mas fora substituído em novembro por Bernardo Guimarães. Narloch era um dos colunistas mais criticados pelos leitores. Se por um lado sua saída não compensa em nada a ausência de Janio, sua permanência seria intolerável, deduz-se pela quantidade de reclamações.
Afastada ou não a discussão ideológica, a explicação do jornal remetida ao ombudsman sublinha outro problema, o financeiro. “Por restrições orçamentárias para 2023, a Folha encerra a colaboração de colunistas do jornal, entre eles Janio de Freitas, Gregorio Duvivier e Marilene Felinto. Janio de Freitas é um dos jornalistas mais importantes do país, com contribuições à imprensa e à Folha que perpassam gerações. Gregorio e Marilene estavam em sua segunda passagem, a primeira encerrada a pedido dos próprios.” Houve dispensas também de profissionais da Redação.
A Folha não foge à regra do mercado jornalístico do país, que não foge à regra do mercado jornalístico internacional. Há uma crise severa no setor, impactado por uma revolução tecnológica sem precedentes, desinformação generalizada e uma fábrica de confusões em torno da liberdade de expressão. Discute-se muito a liberdade, mas é preciso discutir também a sobrevivência do ofício de expressão.
Janio chegou a ter cinco colunas semanais na Folha. Seus textos eram dimensionados pelo que tinha a dizer, não pelo tamanho do espaço reservado na página. Era o terror dos redatores, que corriam para equilibrar expectativa e realidade a minutos do fechamento. A deferência se esvaiu com os anos, não sem atritos. As críticas à mídia e ao próprio jornal eram frequentes em seus textos.
Certamente notaria, como fez Reinaldo Azevedo, que a Folha padronizou da noite para o dia o nome “PEC da Gastança” no lugar de “PEC da Transição”. Na verdade, da noite para a tarde de terça-feira (13), quando a alcunha foi lançada em título de reportagem sobre a negociação da proposta na Câmara. Como se fosse difícil convencer alguém a criticar Lula e o PT neste momento.
Segundo a Secretaria de Redação, “PEC da Gastança” é um “termo que reflete melhor o propósito da emenda, dado que ela ampliará o gasto federal no novo governo”, comparável à “PEC Kamikaze” do atual. Reflete igualmente evidente sensacionalismo, afiançado apenas por bolsonaristas e pela parte hidrofóbica do mercado. Critério bem diferente do adotado na cobertura das “emendas de relator”, já que “orçamento secreto”, de acordo com o jornal, é impreciso.
Pesos e medidas desiguais, estranhos aos leitores que se acostumaram a uma Folha coerente com seu papel nos tempos em que essa atitude era absolutamente necessária, como se dela dependesse sua sobrevivência. Janio, 90, se manteve coerente com seu papel e seu tempo, o tempo todo.
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