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Jornalista brasileiro a serviço da FSP ficou preso quatro dias na Síria

Germano Assad, jornalista curitibano, estava na Síria para aprender árabe. Com visto de estudante, de quebra, escrevia reportagens para a Folha de S. Paulo sobre as manifestações contra o governo sírio. Foi preso pelo serviço secreto sírio numa solitária e submetido a tortura psicológica. Leiam seu relato publicado hoje pelo jornal paulista.

Era uma reunião de emergência. Sentávamos no terraço da casa árabe onde Ahmad vivia, entre as muralhas da cidade velha de Damasco –o maior reduto cristão da capital síria.

Ele nos contava em detalhes a invasão de mukhabarats (polícia secreta síria) em uma casa na vizinhança, no dia anterior. “Foram mais de 20 agentes, no meio da madrugada. Estavam procurando telefones por satélite e aqueles outros modelos que a Al Jazeera está sugerindo para transmissão ao vivo, vocês sabem. Me disseram que foram violentos, quebraram várias coisas e levaram todo mundo, sírios, estrangeiros, estudantes”, dizia.


“E qual a novidade, Ahmad?”, perguntou um dos amigos presentes. De fato, nada novo, para quem estava vivendo no país já por alguns meses.

Eram rotineiras as histórias de estudantes e turistas que foram intimados a prestar depoimento na delegacia e liberados no mesmo dia, de sírios confundidos com ativistas, presos, torturados e liberados semanas depois com um pedido de desculpas e, por vezes, uma compensação financeira.

Já era também mais do que comum ver ativistas trabalhando como jornalistas, reportando ao vivo, utilizando equipamento e servidor especialmente providenciado por grandes emissoras de televisão.

Nosso amigo queria nos convencer de que era hora de considerarmos sair do país.

Três semanas atrás, um documentarista inglês havia sido preso e, com ele, um hard drive com mais de dez horas de imagens e entrevistas com advogados, jornalistas e defensores dos direitos humanos.

Alguns fugiram do país, outros não tiveram tempo e foram presos. Há ainda os desaparecidos, e os que resolveram enfrentar o regime de frente e continuam de pé. Fato é que todos foram ou estão sendo perseguidos pelos mukhabarats. A história do cineasta enfureceu os ativistas.

“Bom, se decidirem não sair do país, pelo menos protejam seus arquivos, e não exponham seus contatos. Depois do documentarista inglês vai ser difícil continuar trabalhando, ninguém quer falar com a mídia”, disse Ahmad.

Mais do que compreensível. Se um jornalista estrangeiro pego na Síria enfrenta uma ou duas semanas de cárcere e interrogatórios intimidadores, um ativista ou profissional local é espancado, torturado com choques elétricos, afogamentos e uma sorte de técnicas medievais utilizadas nos subsolos das prisões e delegacias. Sem a opção de deixar o país e com inúmeras dificuldades para obter status de refugiado em outras terras.

O relato de Ahmad e outra recomendação de um ativista que fugiu para Turquia após a prisão do documentarista inglês (ele aparecia nas imagens) me fizeram considerar a hipótese de sair. Mas estava de fato estudando árabe, e já tinha parado de enviar matérias, há quase dois meses. Meus arquivos estavam protegidos e já tinha apagado os números comprometedores de minha agenda. Mas para os mukhabarats, bastam suspeitas. Não há a menor necessidade de provas ou evidências.

TENTATIVA DE FUGA

No dia seguinte, ao ler o email de um amigo que já estava em Beirute, contando que agentes estavam perguntando sobre a casa em que estava morando na vizinhança, decidi viajar imediatamente. Às sete e meia da noite arrumei minhas malas e peguei um táxi na frente de casa. “Garage Al Samarieh”, disse para o motorista, planejando, de lá, pegar um carro rumo a Beirute.

Uma olhada no retrovisor e a imagem de dois homens de sobretudo vindo na direção do carro me apavoraram: sabia o que estava por vir. Um toque no vidro, eu e o motorista abrimos as janelas ao mesmo tempo, e enquanto um deles identificava-se como agente da polícia secreta, o outro disse apenas o meu nome. O taxista, pálido, colado no banco não falava e nem se mexia. E eu fazia um esforço enorme para manter a calma e a tranquilidade de quem não tem nada a temer.

Desci do carro, ambos os agentes retiraram a bagagem, um deles me deu o braço –como fazemos com parentes ou amigos queridos na Síria– e disse que gostaria muito de conhecer minha casa e conversar um pouco. Fizemos o caminho de volta, entramos na casa. Ofereci um café, ou chá, e eles discutiram entre si. Um queria, outro não. O mais amigável foi convencido e acabamos indo direto para o andar de cima.

Quando ambos caminhavam pelo quarto olhando cada objeto disposto, a campainha tocou. Pensei por um momento que poderia ser a minha salvação, mas foi um momento curtíssimo – em poucos segundos, um terceiro agente subia as escadas, este nem um pouco simpático. E deu início a uma revista detalhadíssima, nos banheiros, nas cozinhas e por último no quarto.

Enquanto derrubava prateleiras, quebrava estantes e tirava tudo do lugar, eu tentava perguntar o que estava acontecendo. De resposta, recebia uma levantada de sobrancelha acompanhada de um ‘tsc’, o típico ‘cala a boca sírio’. Não insisti, claro.

Após revistar lençóis, colchão, armários, escrivaninha, gavetas e um pacote de cereal já pela metade, um deles abriu o frigobar que ficava ao lado da cama e pegou duas pequenas bandejas de doces sírios. Abriu um sorriso e ofereceu para os colegas, que se serviram.

Enquanto comia, o agente que me abordou no táxi pediu para que entrasse em contato com o gerente da casa, oferecendo o meu próprio celular. Pude ouvir as orientações de que, se alguém ligasse ou procurasse por mim, estaria de viagem pelo país.

Com todos os pertences pessoais embalados –e mp3 a barbeador– fechamos as malas e a casa. Um dos agentes me perguntou sobre o sensor de luz na porta principal, fazendo questão de entrar e sair três vezes. Demorei a convencê-lo sobre a simplicidade, e que não tinha nenhuma relação com o dispositivo.

TRAJETO PARA A PRISÃO

Fui conduzido ao carro, de braços dados, dessa vez com o terceiro agente. A dupla, a frente, dava instruções para esperarmos um pouco, conversarmos, e então seguir adiante sem chamar a atenção.

Ao entrar no carro, o agente que me acompanhava colocou uma das mãos em meu joelho, enquanto abriu a jaqueta e retirou um fuzil AK-47 com a outra, encostando a base da arma na porta e a mantendo direcionada para meu rosto. Com batidas na janela, ele mostrava o fuzil para guardas de trânsito, que abriam caminho por ruas interditadas.

Oferecendo um cigarro, ele começou a apontar todas as mulheres na rua, gesticulando e mandando beijos. Eu concordava, esboçava um sorriso e até mesmo algumas risadas. Ainda acreditava que poderia se tratar de uma ‘triagem de estrangeiros’, simples denúncia ou algo que se resolvesse rapidamente.

O primeiro agente perguntou se eu conhecia a rua que percorríamos, se conhecia aquela região. Estávamos no centro da cidade, tinha passado por ali várias vezes. Mas de tanto conversar com gente recém-saída da cadeia sabia que uma afirmativa poderia significar uma venda bem apertada. E respondi que “não exatamente”.

Mas sabia sim, exatamente onde estava. Tinha visitado diversas vezes o parque que leva o nome de Al Arsouzi, o escritor, nacionalista árabe e um dos grandes inspiradores do partido Baath. Mas nunca havia reparado no prédio ao lado, protegido por muros altos e policiais a paisana com suas kalichnikovs.

Na entrada do edifício, um lance de escadas com um portão no meio levava ao subsolo. Ali, sobre uma mesa, colocaram minhas malas e começaram a tirar tudo de dentro, fazendo perguntas sobre cada objeto. A cada “uprising, freedom ou revolution” (revolta, liberdade ou revolução) que encontrava em meus livros todos me olhavam, liam a palavra em voz alta, balançavam a cabeça negativamente e emitiam onomatopéias: “Hmmm, ai ai, tsc, tsc.”

O agente que havia me conduzido até lá anunciou sua partida, e já não havia mais ninguém que falasse inglês. O cidadão que ficara pediu meus cadarços e cinto, e então tive a certeza que a situação era das piores.

CELA E INTERROGATÓRIO

Levado para um corredor longo e estreito, fui colocado em uma cela solitária muito pequena, sem janela, com duas mantas ‘corta-febre’ e uma lâmpada comprida fluorescente que ficava ligada o tempo todo. No meio da pesada porta de ferro havia uma portinhola, por onde recebi um pão dobrado minutos depois, e, em seguida, um prato com arroz gelado e dois pedaços de berinjela.

Tentava achar uma posição confortável para deitar, virava de um lado para o outro evitando o chão gelado e usando a jaqueta de travesseiro, enquanto as sandálias do carcereiro se arrastavam pelo corredor. Ouvia as portas das celas vizinhas sendo abertas, outros presos utilizando o banheiro, que davam uma batida na porta para avisar que haviam terminado e eram orientados, com um grito, a voltar.

Chegada a minha vez, enfrentei a fúria do carcereiro quando este viu que meu prato estava cheio e dentro da cela. Impaciente, ordenou que o passasse pela fresta de baixo da porta, nas próximas vezes. Fui ao banheiro, dei a batida na porta, ouvi o grito, lavei as mãos, o rosto e voltei para a cela.

Acordei com o barulho da porta se abrindo, e o carcereiro do turno seguinte me mandando levantar. Gesticulando para que eu não vestisse meu tênis sem cadarço e nem a jaqueta-travesseiro, ele me vendou e conduziu para uma sala. Sentado, escutei um agente dizer, em inglês, que informações muito ruins a meu respeito haviam chegado até a polícia. Percebi que havia outro, tomando nota de tudo.

À medida em que pediam informações sobre pessoas com quem havia mantido contato, falavam sobre lugares e regiões conturbados em que estive e detalhavam até mesmo conversas e opiniões específicas que tinha tido com pouquíssimas pessoas. Faziam também questionamentos padrão, e algumas afirmações absurdas.

“Sabemos que fala árabe, mas por algum motivo, finge que não fala”, disparou um deles. Perguntou sobre os dois repórteres brasileiros que trabalharam na Síria com permissão do governo e minha ligação com ambos, minha opinião sobre os acontecimentos na Síria, o que as pessoas com quem convivo falam sobre a situação, fontes de renda, trabalhos anteriores no Brasil, países que visitei antes de chegar na Síria, o motivo de minhas idas ao Líbano e se já havia pisado na Palestina ou em Israel.

Até aí, tudo bem. Estávamos, provavelmente, no começo da manhã de segunda-feira. A agonia da venda e o frio nos pés descalços faziam com que me encolhesse cada vez mais na cadeira. Falei de meus trabalhos anteriores, que juntei dinheiro, planejei a viagem, gostaria de visitar o vilarejo de minha família, mas estava esperando a situação em Homs se acalmar, pela proximidade e pelo medo da estrada.

Contei o que ouvia de amigos cristãos, principalmente, todas as histórias de sequestros, ônibus alvejados, balas perdidas, gente morta quando comprava pão ou tentava sair de casa, abusos e mutilações cometidos por grupos extremistas –o que de fato vem ocorrendo em Homs e em vilas nas proximidades desde meados de agosto/setembro, dando um viés sectário ao conflito que toma forma de guerra civil apesar do histórico de convivência harmoniosa e tremendo esforço de conscientização vindo de moderados em ambos os lados.

Claro que não mencionei os relatos e imagens de tanques disparando contra bairros sunitas (habitados também por outras minorias), prisões arbitrárias de pelo menos um membro de cada família em bairros com manifestações frequentes e nos subúrbios de Damasco, repressão violentíssima de protestos pacíficos, sequestro e assassinato de jovens e outra infinidade de atrocidades sofridas por opositores e ativistas.

Enquanto defensores do regime colocam a culpa em salafistas patrocinados pela Arábia Saudita e países do golfo, opositores evocam o termo ‘propaganda oficial’ para apontar o regime como culpado pela fabricação das tensões sectárias com o intuito de manter as minorias ‘controladas’ e do seu lado. E cada qual dispõe de seus próprios canais de comunicação para divulgar versões exageradas, distorcidas e por vezes completamente mentirosas dos fatos.

Já calculava, mentalmente, de duas a três horas de perguntas. Um dos agentes começa a ler alguns números e citar nomes. Eram as minhas ligações, feitas, recebidas, e mensagens trocadas. Todos os contatos que apaguei do celular estavam registrados na papelada da operadora local de telefonia, que estava nas mãos de meu interrogador.

E ele perguntou, nome por nome, ocupação, tipo de relacionamento, o motivo de ter contato com tantos palestinos, se algum deles era curdo, oposicionista, de algum partido político ou grupo islamista. Foi uma eternidade para ouvir a conclusão: “Você parece ser um rapaz correto, aqui, falando, mas não acreditamos em você. Temos informações terríveis a seu respeito”, ao final.

ISOLAMENTO

Empurrado pelo carcereiro, voltei para a solitária, tropeçando nos pequenos obstáculos espalhados pelo caminho. Já dentro da cela, a venda foi retirada e voltei a me revirar em busca da posição menos desconfortável possível. Ouvi batidinhas ritmadas na minha parede, como se meu vizinho perguntasse “e aí, como foi?”. As devolvi, mandando um “assustador”, mentalmente.

O tempo não passava e a lâmpada fluorescente castigava os olhos, impedindo qualquer possibilidade de sono. Deitado na cela, encostava a sola dos pés em uma parede e a cabeça na outra, numa extensão de não mais de 1,70 por meio metro.

Tentava manter a noção do tempo pelas refeições e idas ao banheiro, logo na sequência, uma vez por dia, sempre a noite. Pensava nas brechas e respostas dadas no interrogatório, não aguentava mais ficar sentado, deitado, e quando levantava para vislumbrar uma paisagem diferente pela portinhola ouvia gritos e ameaças do carcereiro, que me mandava sentar novamente.

Horas depois abriram a porta da cela, e me mandaram levantar. Dessa vez coloquei o tênis, vesti a jaqueta e fui conduzido sem venda para uma sala grande, com dois sofás, uma mesa comprida, um quadro pequeno de Hafez al Assad e um enorme do filho e atual mandatário, Bashar al Assad, na parede oposta.

Um cidadão caricato –muito alto, magro, de terno, gravata, uma pinta grande na bochecha e muito gel no cabelo– e outro senhor, beirando os 70 anos, conversavam. Levantaram assim que me viram. Apertaram minha mão e me ofereceram o sofá.

“Desculpe por prendê-lo, Germano”, disse o caricato. “Mas nós precisamos de informação. Você sabe a situação do país…”. Enquanto isso o senhor entrava na sala carregando uma bandeja com um copo de água. Agradeci, tomei em um gole e aceitei o cigarro que me ofereceu.

Começaram pedindo informações sobre alguns dos meus contatos encontrados na papelada da companhia telefônica, falaram de amenidades e insistiram que tinham informações de que estava em contato com pessoas na mídia. Com as minhas negativas e a dificuldade de comunicação –ambos falavam muito pouco inglês e meu árabe é limitado– acabaram desistindo.

Tentei fazer uma pergunta e pedir contato com a embaixada, mas recebi de imediato mais um ‘cala a boca sírio’. Me esticaram um bloco para que anotasse meu email, senha e Facebook. “Não há tradutor hoje, que pena. Não iremos longe assim, conversamos amanhã”, decretou.

FOME E FRIO

De volta à cela, pensava em uma forma de queimar a lâmpada propositadamente. Mas não sabia como fazer parecer um acidente, e temi as represálias. Abriu-se a portinhola, um pão sírio voou para dentro da cela, seguido de um prato com uma batata e um ovo cozidos, gelados, e cinco azeitonas.

Na ida ao banheiro, reparei que eram 15 solitárias, e estava na 12. Por displicência do carcereiro, a portinhola da cela 11 estava aberta e pude fitar meu vizinho das batidas na parede nos olhos.

Já na cela, olhava em volta, nas “artes” dos prisioneiros anteriores, e imaginava como faziam para contar os dias com riscos na parede. Tentei com o zíper da jaqueta, mas não era forte o suficiente. Percebi que na porta de ferro os dias, as assinaturas e o Allah Akbar (Deus é maior, em tradução livre) –frase repetida a exaustão por manifestantes quando deixam as mesquitas para protestar e que tornou-se praticamente um slogan da revolução –foram desenhados com pequenos pedaços de barbante.

Prendi dois pedaços, um ao lado do outro e comecei minha própria contagem. Haviam cinco, no total, e a mais curta delas contabilizava 36 riscos. Sentei, e pela primeira vez ouvi um grito pavoroso, muito alto.

Tentei ver algo pela portinhola e fui xingado e ameaçado pelo carcereiro. Sentei novamente, com o coração disparado, pensando que, se algum dos meus contatos fosse preso e torturado por minha culpa nunca me perdoaria. Que talvez já estivessem atrás de alguns deles…

E assim passei o resto de meus quatro dias em um dos calabouços sírios. Não me chamaram para novos interrogatórios, o que me deixava mais apreensivo. No terceiro dia continuava pensando nas brechas, nos erros, nos amigos sírios, mas também em comida.

Tinha muita fome, e não consegui acreditar quando serviram um prato com burghul (cereal derivado do trigo) e dois pedacinhos de frango. Gelado mas delicioso, perto das refeições servidas até então. Comi, coloquei o prato no corredor pela fresta embaixo da porta e me revirei por longas horas, já sem me importar com o chão frio.

LIBERTAÇÃO

Colava mais um pedaço de barbante na porta quando meu vizinho começou a dar batidas na parede. Respondi, mas ele estava insistente. “Fadiii”, arriscou. Entendi, finalmente, que ele não estava tentando conversar ou perguntar algo, mas simplesmente me pedia para chamar o amigo, da solitária 13.

Bati na parede oposta, até que ambos começaram um diálogo. E o esquema perdurou até a minha libertação. Minhas distrações eram tentar decifrar as conversas entre os vizinhos de solitária, e os desenhos com barbante, sumariamente interrompidos por gritos pavorosos no meio das noites.

Quando na porta já haviam cinco riscos de barbante, e eu arriscava um boneco preso gritando por socorro com a mesma matéria-prima, me tiraram da cela. Nas minhas contas era a madrugada de quinta-feira, o último dia do Eid Al-Adha, feriado muçulmano.

Sem a venda, presenciei a pior das cenas desde o primeiro dia naquele lugar. Ao longo dos corredores e salas do edifício estavam pelo menos 25 homens, de todas as idades, ajoelhados, de frente para a parede, descalços e sem camisa, algemados e com os braços levantados acima da cabeça.

Seis guardas tomavam mate e jogavam baralho ao lado da escada que levava a saída. Minhas malas estavam abertas, no chão. Me pediram para verificar os pertences e contar o dinheiro e eu falava que estava tudo bem, enquanto olhava ao redor e via que minha experiência não foi nada perto do que estava para acontecer com aquelas pessoas.

Após assinar vários documentos e deixar por lá minhas impressões digitais, fui acompanhado por outro agente até um táxi. Estava todo dolorido e arrastando meu tênis sem cadarço pela rua.

INTERVENÇÃO DIPLOMÁTICA

Em casa, tentava alertar, por email, todos os amigos citados pelos mukhabarats, e agradecia, ao telefone, a intervenção salvadora do embaixador Edgar Casciano, que ficou sabendo da minha prisão na quarta-feira e resolveu o assunto no mesmo dia.

Na residência oficial, esperando o horário do meu vôo, descobri que o diplomata brasileiro já interveio com sucesso inclusive em casos envolvendo famílias sírias, pelo prestígio que possui e pelas ‘portas abertas’ que a tão criticada política externa brasileira insiste em manter na Síria. Estou certo que, fosse europeu ou americano, a história seria muito mais longa, e o final bem menos tranquilo.

No caminho para o aeroporto, enquanto lembrava os protestos que presenciei, adolescentes e idosos, meninas e rapazes brutalmente espancados pelas forças de segurança, os próprios agentes de segurança caindo em emboscadas como a que matou dezenas de soldado em Yis Al Shugur e a situação caótica em Homs, lia com lágrimas nos olhos a frase “Suria bihair” (A Síria está bem, em tradução literal), colocada na boca do ditador Bashar Al Assad, de braços abertos e sorriso acolhedor, em um outdoor gigante.