Pouco se sabe sobre o desembargador João Pedro Gebran Neto, o relator da Lava Jato na segunda instância, o homem que tem diante de si a responsabilidade de definir o futuro político do ex-presidente Lula. Cabe ao magistrado e a outros dois desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF-4) confirmar ou não a condenação do petista, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, pelo juiz Sergio Moro. Se Lula for condenado por eles, será, em tese, impedido de concorrer nas eleições de 2018, em virtude da lei conhecida como Ficha Limpa. Gebran faz o tipo seco e reservado, que recusa insistentes pedidos de entrevista. Outra faceta do curitibano de 53 anos emerge nos ambientes em que se discute a saúde pública. Ali ele se sente em casa, diz o que pensa e até sorri. Oriundo do Ministério Público, Gebran escreve livros e participa de debates com o objetivo de reduzir as filas do Sistema Único de Saúde (SUS) e a intensa judicialização que contribui para o mau uso dos recursos públicos. Em um dos almoços do 5º Congresso Brasileiro Médico e Jurídico, presidido por ele e realizado em Vitória, no Espírito Santo, no final de setembro, Gebran dispensou a sobremesa, mas contou que gosta de chocolate suíço. Amargo, de preferência. Entre pedidos de atenção e de selfies, o desembargador abriu espaço para falar a ÉPOCA. A seguir, alguns trechos da entrevista:
ÉPOCA – O Artigo 196 da Constituição afirma que “saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas…”. Por que muitos juízes valorizam o que leem antes da vírgula e desconsideram o que aparece depois?
João Pedro Gebran Neto – Você destaca um ponto fundamental. Todo mundo diz que saúde é direito de todos e dever do Estado, mas a redação da Constituição não é só essa. Ela diz que isso deve ocorrer mediante políticas públicas. A meu juízo, esse é o cerne da discussão. Temos de discutir a política pública, e não um direito absoluto a todo tipo de providência. Temos direito a ter uma política pública que cubra o melhor tipo de assistência possível. Possível significa que temos um Estado e ele tem recursos econômicos limitados que devem ser geridos para dar conta de uma certa política.
ÉPOCA – Se além desse artigo da Constituição existem leis ordinárias , como a 8080, que estabelecem quais são as atribuições do SUS, por que o Estado tem sido obrigado a fornecer medicamentos e outros recursos que não fazem parte da política pública?
Gebran Neto – A grande controvérsia é que os operadores do Direito, de modo geral, têm feito uma ligação da Constituição com direito material. Eles fazem uma leitura da Constituição, a meu juízo parcial e equivocada, e conferem um direito às pessoas. É possível ocorrer isso do ponto de vista da teoria constitucional? É possível, mas, quando há uma interposição do legislador – isso é direito constitucional puro – por meio de leis que regulam e organizam aquele sistema, temos de privilegiar a regulação legislativa e democrática. Essa regulação foi feita pela Lei 8080, mas o que a gente vê com a jurisprudência é pouquíssima leitura dessa lei e muita aplicação direta da norma constitucional ao direito do indivíduo. Isso substitui o legislador e gera uma situação caótica. Bem ou mal, o Estado, por meio de seus órgãos competentes e das leis, criou uma estrutura para definir o que é integralidade e universalidade na saúde pública. Isso não tem sido bem aplicado pela jurisprudência. Já ouvi muitos colegas dizendo que, se um médico prescreveu, eles acham que o Estado tem de dar. Não é assim que se organiza uma política pública. Essa leitura está equivocada, mas o juiz fica muito fixado naquele drama humano.
ÉPOCA – Os juízes confiam demais nos médicos?
Gebran Neto – Os juízes confiam demais que as pessoas têm uma necessidade de atendimento e confiam demais que aquele medicamento vai proporcionar a cura. Acho que, no inconsciente, eles não querem ficar com a responsabilidade de decidir a sorte daquela pessoa. Compreendo a boa intenção dos juízes que deferem liminares e a angústia de todas as partes que pedem uma providência que não está na política pública de saúde. Mas uma estimativa modesta do Ministério da Saúde demonstra que, todos os anos, R$ 7 bilhões são aplicados por ordens judiciais. Nenhum país do mundo tem isso.
ÉPOCA – O senhor diz que existe a boa e a má judicialização. Qual é a diferença?
Gebran Neto – Há um tipo de judicialização que diz respeito à falta de cumprimento das políticas públicas de saúde. Quando falta na prateleira um remédio previsto na relação nacional de medicamentos, quando faltam médicos, quando um posto de saúde está completamente deteriorado ou quando a pessoa precisa de um especialista e essa consulta vai demorar quatro, dez ou 40 meses, isso é uma falha do sistema de saúde. Essa falha pode ser demandada judicialmente e o Poder Judiciário pode impor obrigações ao Estado. Essas são ações extremamente organizativas. Quando a pessoa pede uma providência que está fora da política pública de saúde. Ou seja: quando o Estado não se comprometeu a fazer aquilo porque quem gere o orçamento faz escolhas, não cabe ao Judiciário dar.
ÉPOCA – A má judicialização aumenta a iniquidade do sistema?
Gebran Neto – Sim. Mesmo nos lugares onde há omissões estatais, ações coletivas fariam mais bem que as individuais. Ações coletivas que não buscassem uma providência específica (quero um remédio para fulano), mas que fizessem, por exemplo, um plano de atendimento para uma localidade acabar com as filas de ortopedia em um prazo razoável. Vamos provocar o Estado para que uma política falha possa melhorar e ser concretizada. O SUS poderia ser melhor, mas é um caso de sucesso – ainda que cheio de problemas. Temos de melhorá-lo, em vez de acabar com ele.
ÉPOCA – As ações são estimuladas pela indústria farmacêutica?
Gebran Neto – Ela faz parte do problema, mas não é o problema em si. Há vários responsáveis por isso. Se o Judiciário vem conferindo direitos, é natural que qualquer pessoa recorra a ele quando acha que precisa de uma determinada providência. O Judiciário precisa analisar com profundidade o que é devido e o que é indevido. Precisa conhecer a Lei 8080, a política pública de saúde e saber como funcionam a assistência farmacêutica e a fila de atendimento. A indústria farmacêutica demanda muito. Ela lança tecnologia, promove eventos para divulgá-la e quer vender. Há casos de indústrias que financiam associações de pacientes para que eles entrem com ações judiciais. A indústria tem seus interesses, seus objetivos e seus métodos. É preciso que a gente faça o filtro. É preciso que o Judiciário acorde para perceber que há um ator nesse cenário – a indústria – que, ao final de tudo, busca o lucro. Isso não é ilegal, mas, via de regra, o produto novo é mais caro e menos testado. Por isso, precisamos valorizar a medicina baseada em evidências. A sociedade precisa saber que a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) é uma irmã gêmea do The National Institute for Health and Care Excellence (Nice), a instituição que decide o que o Reino Unido deve oferecer no sistema público de saúde. Essas decisões precisam ser respeitadas.
ÉPOCA – Muitas pessoas acham que a valorização de critérios técnicos como os adotados pela Conitec é coisa de gente sem coração. O senhor tem coração?
Gebran Neto – Acho que tenho muito coração. Já sofri bullying de vários colegas. Brincando, eles dizem que não dou remédio para ninguém. Quem pensa no coletivo e quer construir um sistema de saúde melhor, mais harmônico e justo; quem não está preocupado exatamente com aquele caso que tem nome, CPF e RG, mas está preocupado com os desassistidos sem nome e sem face que vivem na rua… Essa pessoa tem coração. Estou preocupado com o todo e não só com aquele tratamento no exterior. Estou preocupado com quem tem fome. Quem está preocupado com o social tem coração.
ÉPOCA – Como vai funcionar a ferramenta digital criada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para aconselhamento técnico dos juízes?
Gebran Neto – O CNJ, por intermédio do Fórum Nacional da Saúde e por iniciativa do conselheiro Arnaldo Hossepian Lima Junior, formulou uma proposta de banco de dados para estruturar os Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus), que funcionam nos tribunais de Justiça. Criamos uma ferramenta de modelos eletrônicos de formulários e de notas técnicas a serem preenchidos por profissionais de saúde dos NAT-Jus. Esses formulários e essas respostas devem seguir a medicina baseada em evidências. Isso que está na lei e o Poder Judiciário deveria considerar é incorporado a nosso projeto. O magistrado fará a busca com o nome do medicamento demandado e saberá, por exemplo, se ele é eficaz para determinada moléstia. As informações serão oferecidas para todo o Brasil, sem a identificação do paciente. O banco de dados está pronto. Ele foi desenvolvido de graça pelo departamento de informática do TRF-4. O conselheiro Arnaldo Hossepian apresentou esse projeto ao CNJ e agora ele está sob avaliação da ministra Cármen Lúcia. Espero que ela tome uma decisão proximamente para que esse banco de dados seja adotado. Além dessas notas técnicas produzidas em cada um dos Estados, o próprio CNJ, por meio de um convênio, está contratando avaliações técnicas feitas por profissionais dos hospitais de referência do Brasil. Isso tudo não é para solucionar um problema do juiz. É para solucionar um problema coletivo.
ÉPOCA – O senhor acha que os juízes vão consultar esses pareceres?
Gebran Neto – Essa é uma questão de persuasão, de sedução. Estou há muitos anos nessa estrada. Devagarinho, a gente vai seduzindo as pessoas. No começo é um discurso que a pessoa pode não gostar, mas depois ela percebe que há uma grande quantidade de demandas e que há muitos interesses corporativos envolvidos. Da indústria e do médico, por exemplo. Com o tempo, as pessoas vão percebendo que precisamos melhorar a assistência básica à saúde. Qualquer país com um sistema de saúde universal que busca atender a grande massa da população precisa voltar seus olhos para a atenção primária à saúde.
ÉPOCA – Qual é sua maior motivação hoje: reduzir a má judicialização da saúde ou atuar como o relator da Lava Jato na segunda instância?
Gebran Neto – Tenho duas atividades: minha jurisdição criminal em Porto Alegre e a atividade voltada à saúde, que atualmente é lateral. Em ambas, eu me sinto motivado em ser justo. Minha preocupação é ser correto, fazer o melhor e ser justo. Sou apaixonado pelo que faço. Tenho paixão pelo que faço na minha jurisdição, sempre tive, e tenho paixão pelo direito à saúde.
ÉPOCA – Em relação à Lava Jato, o senhor tem a responsabilidade de decidir o futuro político do ex-presidente Lula…
Gebran Neto – Eu disse que não ia tratar desse assunto.
ÉPOCA – Não posso deixar de perguntar. O senhor vai decidir uma questão de grande importância para o Brasil…
Gebran Neto – Não trabalho com essa lógica.
ÉPOCA – Qual é a lógica do senhor?
Gebran Neto – Minha lógica é que tenho a minha frente processos de diversas ordens e tenho de fazer meu melhor. Tenho de ser justo, equânime e imparcial. Tenho de ser correto. Vou fazer meu melhor e aplicar o Direito dentro das limitações da minha capacidade. Faço isso no processo em que julgo um traficante, em um processo de pessoa acusada de descaminho, em um estelionato contra a Previdência e também nos processos que envolvem corrupção, lavagem de dinheiro e crimes de grande monta. Vou analisar o processo, vou discutir o processo. Tenho uma equipe maravilhosa de servidores que trabalham comigo, debato profundamente com eles. Tenho certeza de que não sou o senhor da razão. Não acho que estou sempre certo. Debato e escuto as pessoas. Decidimos em três. Tenho outros dois colegas extremamente qualificados (os desembargadores Leandro Paulsen e Victor Luiz dos Santos Laus). Convergimos em muitas coisas, divergimos em outras, mas essa é uma decisão plural. A minha decisão pode ser singular, embora bem debatida e refletida, mas a do tribunal é plural. Tenho certeza de que o tribunal tem atuado no melhor de suas forças para produzir uma boa jurisdição. Isso é fundamental. É entregar para a sociedade brasileira aquilo que aquele colegiado reconhece como justo, legítimo e legal. Essa é minha motivação. As decisões têm consequências políticas? Todas elas têm. A decisão sobre conceder ou não um medicamento também tem uma consequência política. O julgador não se preocupa com isso. Muitas vezes, ele tem de agir contramajoritariamente. Mas tem de fazer aquilo que acredita. Todos nós lá no tribunal fazemos isso.
ÉPOCA – O senhor é frequentemente descrito como um juiz “linha dura”. Concorda com essa definição?
Gebran Neto – Não gosto de rótulos. Acho que são injustos. As pessoas estão olhando por uma fresta. Não estão olhando para o todo. As pessoas veem algumas decisões e acabam criando um perfil para determinadas pessoas. Eu me sinto um juiz que quer ser justo. Um juiz que acredita que temos de aplicar as leis e que podemos fazer um Brasil melhor. Temos de ter uma perspectiva de como funcionam as coisas em países que tiveram sucesso. Isso vale para a saúde e para a política criminal.
ÉPOCA – O que o senhor pensa sobre a crise ética e financeira que o Brasil vive?
Gebran Neto – Acho que, aos poucos, o conceito de cidadania vai sendo retomado. A crise é uma janela de oportunidade para reflexão. Somos responsáveis quando votamos, elegemos e participamos da atividade política. A sociedade vai ter de dar conta de eleger boas pessoas, tomar cuidados para verificar qual é o programa daquele partido, quem são as pessoas que integram aquele partido, se elas gostam daquela ideologia etc. São cuidados de retomada da cidadania. Isso vem sendo construído ao longo dos anos, com acertos e erros. A vida é assim mesmo. Nossa democracia é relativamente jovem. Retomamos isso em 1989, com eleição direta para presidente da República. Acertamos, erramos, enfim. É assim que um país jovem, uma juventude se comporta. Infelizmente, não temos um pai para corrigir os erros da juventude. Vamos ter de aprender com as próprias pernas. Estamos fazendo isso.
ÉPOCA – O senhor diz que a sociedade vive um momento de grande desalento. Como descreve esse desalento?
Gebran Neto – Desalento é ver 14 milhões de pessoas desempregadas. É essa falta de confiança nas autoridades e nas instituições e a expectativa de que apareça alguém para resolver nossos problemas. Nós temos de resolver nossos próprios problemas. Temos de discutir, trabalhar, conversar. Precisamos de transparência, ordem e organização. À medida que o Brasil retome sua marca de crescimento e as estruturas voltem a funcionar, vamos voltar a ter bons motivos para sorrir. Nos lugares do país onde o dinheiro foi mal gasto, isso vai demorar um pouquinho mais. Acho que o Brasil vai sair dessa.
ÉPOCA – O Brasil tem jeito?
Gebran Neto – O Brasil tem jeito. Apesar do momento de desalento, temos muitas coisas que melhoraram de 1988 para cá. Como estamos vivendo este momento opaco, não conseguimos enxergar. Uma das coisas que melhoraram é o SUS. Antes dele a saúde era pior. O ensino também se tornou mais inclusivo. A educação tem falhas de qualidade, mas é muito mais ampla do que já foi. Melhoramos a renda do brasileiro. É difícil dizer isso neste momento, mas o salário mínimo melhorou. Passou o salário mínimo dos sonhos de US$ 100 que tínhamos lá atrás. Há uma coisa que piorou muito: a violência. Matamos 64 mil pessoas por ano. Esse é um dado catastrófico. É uma guerra civil.
ÉPOCA – A corrupção também aumentou?
Gebran Neto – Não sei fazer essa leitura. O que houve foi a revelação. O que houve foi transparência. Como não sabemos o que aconteceu no passado, não sabemos se aumentou ou diminuiu. O que sabemos é que agora estamos tendo transparência. Temos investigação. Isso é positivo. Outra coisa muito positiva: diante de todo esse cenário, vemos o Poder Judiciário funcionando, o Ministério Público funcionando, a polícia funcionando, a economia funcionando (ainda que com dificuldade), o Congresso funcionando. Apesar de todos os problemas, temos um país funcionando. É um passo de maturidade. Temos de ser otimistas.
ÉPOCA – Vivemos uma crise de lideranças. As pessoas não sabem mais em quem confiar e temos visto o ressurgimento do discurso autoritário. O que o senhor acha disso?
Gebran Neto – O caminho é a democracia. É aprender acertando e errando. No futuro, o brasileiro vai saber fazer escolhas. E será beneficiado ou prejudicado pelas escolhas que fez. O Brasil tem de investir na democracia, na transparência e em um Estado melhor. É assim que vamos progredir.
ÉPOCA – O senhor pensa em entrar para a política?
Gebran Neto – Não penso nisso. Nem em me aposentar. Penso em continuar na magistratura até a velhice. Hoje posso trabalhar até os 75 anos. Se Deus conservar minha saúde, provavelmente vou continuar lá.
ÉPOCA – O senhor tem sofrido assédio nas ruas por causa da Lava Jato? As pessoas pedem autógrafos ou selfies?
Gebran Neto – Não sou famoso. Ainda bem. Ninguém pede para tirar foto comigo nas ruas. Aqui no Congresso há gente que pede. Sou um cidadão muito simples e não tenho essa perspectiva.
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