Íntegra da palestra do governador Roberto Requião na ABI
Começo esta intervenção com um desabafo.
Em janeiro de 2003, assumi mais uma vez o Governo do Paraná. E, logo de entrada, suspendi o pagamento de vários contratos que estatais paranaenses mantinham com empresas multinacionais. Contratos, por exemplo, na área de energia, firmados entre a Copel e a espanhola Endesa e as norte-americanas El Paso e NRG Energy. Contratos que, se mantidos, levariam a nossa Copel à insolvência e, na seqüência, certamente, à sua absorção por uma dessas gigantes globais.
O mundo caiu sobre minha cabeça. O glorioso jornal que um dia foi dos Mesquita, o “Estadão”, chegou mesmo a criar um novo indicador, o “Risco Requião”. Fui brindado com toda sorte de epítetos, o mais doce deles dizia-me “dinossauro”. Na verdade, à época, éramos todos, os que se opunham ao modelo que o capitalismo globalizava, “dinossauros”. Saurisquianos, ornitisquianos, ultrapassados, atrasados, gente que perdera o passo na história, deslocados no tempo, fora de órbita, extintos.
Revisar contratos lesivos ao interesse público, afinal, era uma das mais graves heresias contra o “modelo”. Sacralizaram, dogmatizaram as regras impostas pelo mercado; transformaram em suas as razões do lobo, porque, mesmo à jusante, sentiam-se participantes, vozes ativas da “nova história”. Ou do “fim da história”, essa monumental besteira que andaram inventando, o que dá a medida de quão medíocres foram esses tempos.
Aprendi, com amargura, o significado de “pregar no deserto”. O pensamento único patrulhava, acuava, buscava ridicularizar, constrangia as críticas ao modelo e descartava como ignorante toda observação sobre os riscos do cassino global, sobre a insanidade do jogo nas bolsas, sobre a especulação sem regras ou limites.
Até mesmo o mais analfabeto, boquirroto e fronteiriço dos comentaristas de rádio, entre a douta opinião sobre o jogo de futebol de domingo e a cena de sangue no boteco da esquina, julgava-se qualificado para falar desse maravilhoso mundo novo das corporações, das cotações, dos contratos, das desregulamentações. E depois de uma vergalhada no bandeirinha e na polícia, uma ripada no governo que “descumpria contratos e colocava em perigo os investimentos estrangeiros no Brasil”.
Parecia o fim do senso crítico, do bom senso. Estarrecidos, presenciávamos as apostasias, a atração hipnótica do “bezerro de ouro”. Gente importante, com certa biografia, de antiga militância, desmamando-se de suas crenças, de velhos compromissos. Alguns, aliviados, apressados na adesão. Outros, tocados pelo anseio ao pertencimento, enturmando-se com os pregoeiros do novo liberalismo, sôfregos para serem aceitos e perdoados por seus desvios juvenis.
Todos eles, como no poema de Fernando Pessoa, homens graves, responsáveis, confiáveis, cumpridores de deveres. E de contratos. Pacta sunt servanda, era o lema de todo o entreguista, dos entusiastas do desenvolvimento dependente.
Assim eram aqueles dias. Todos eufóricos, todos orgulhosos dos sólidos fundamentos da macro-economia. E chibata em quem se opunha, que ousava dizer que o rei estava nu.
Concluído esse desabafo, registro que poucas vezes em minha vida fui tão duramente, desrespeitosamente combatido como naqueles dias. Especialmente por minhas críticas à especulação financeira, à jogatina nas bolsas, à prevalência da usura, da agiotagem sobre a produção, sobre o trabalho.
Mas, eis aí esse modelo de capitalismo fazendo água: o molde que tem no capital financeiro, na especulação financeira seu eixo. Que se impôs, sobrepôs, expandiu-se, reinou a partir dos anos 80, os gloriosos anos Reagan-Tatcher. Que se alastrou com velocidade ainda maior com o fim da União Soviética.
Na verdade, o modelo já trazia no ventre o DNA da crise. Desde sua concepção e gestação foi uma fraude, um engodo, uma mentira. Qual é a idéia? A idéia é a globalização do capitalismo, sua universalização, com a livre mobilidade dos fatores de produção, do capital e do trabalho. A libertação, sem peias, sem embaraços das forças de produção.
E assim foi?
Para o capital, sim. Para ele, a mais irrestrita mobilidade. Todas as barreiras quebradas para o seu trânsito, para a sua circulação. Sem regulamentos, sem regras, sem condicionantes. Libérrimo, avassalador.
Mobilidade para o trabalho? Fator trabalho?
Ora pois, direis, ouvir estrelas…
E que capital mais avidamente, mais rapidamente apropria-se da renovação tecnológica, por exemplo, da incrível velocidade da internet, para circular? O capital financeiro. E, a partir daí, constrói-se um modelo onde a economia real não é considerada, não é levada em conta. As bolsas e a especulação a substituem.
Quer dizer, a globalização capitalista, a idéia da livre mobilidade dos fatores de produção esfuma-se, dissolve-se na voragem insana da roleta da especulação financeira.
E nós, o terceiro mundo, somos compelidos – e os nossos governos cedem – a aplicar políticas econômicas de subordinação a esse modelo, deixando nossas populações à mercê das altas, das baixas, das quebras das bolsas. Do bom ou mau humor do mercado, de suas idiossincrasias, de seus suspiros, respiros e resfriados. De seu nervosismo. Nada mais me intriga quando dizem que o mercado “amanheceu nervoso”. Essa antropomorfização do mercado sempre me espantou.
E dá-lhe teoria da dependência como fator de desenvolvimento.
Temos, então, aquela cena já clássica, onde se vê um rapaz, na faixa dos vinte e poucos anos, recém-graduado ou graduando em economia, com um computador na mão, detonando, em um só clique, a economia deste ou daquele país asiático ou latino-americano, como se brincasse com um playstation.
Uma das barreiras que a globalização capitalista tratou de, primeiramente, por no chão, foi o Estado. Desguarnecido de proteções, o Estado – notadamente os do Sul – transformou-se em presa inerme frente ao avanço dos especuladores. Na verdade, não é apenas ao capital financeiro e sua necessidade vital de liberdade de ação que interessa o enfraquecimento do Estado. A internacionalização do neoliberalismo também precisa de Estados débeis, impotentes na defesa dos interesses nacionais e populares, mas fortes na defesa do capital global.
Daí todo um arcabouço jurídico, leis e decretos, medidas provisórias, emendas e reformas constitucionais introduzidas para – como eles dizem – “criar um ambiente propício aos investidores”.
Daí a privatização da Justiça, com os Tribunais Arbitrais substituindo as cortes internacionais, e decidindo sempre a favor do capital. Essa avaliação não é minha. É do insuspeito New York Times.
Dessa forma, espalha-se pelo planeta uma nova síndrome de imunodeficiência, que contamina, debilita, prosta os Estados e suas instituições.
Diante disso, não compartilho com o entusiasmo de alguns que se comprazem quando o Estado norte-americano, os Estados europeus e asiáticos intervêm na crise, propondo medidas que parecem contra-senso em relação aos preceitos neoliberais. Alguma regulação para evitar o desvario dos especuladores não quer dizer revigoramento do Estado. Socorro ao sistema financeiro, para que tudo o mais não sossobre, não seja levado na enxurrada da crise, não quer dizer reavivamento do Estado.
Na verdade, é o Estado cumprindo o seu estrito papel, sua razão de ser, segundo o ponto de vista dos neoliberais, que é o de dar sustentação ao capital financeiro.
Logo, acho um tanto quanto imprudente esperar que crise financeira de hoje resulte, como a crise de 1929, em uma revisão profunda do papel do Estado e que tenhamos de volta qualquer coisa assemelhada ao Estado de Bem-estar Social. Enfim, perdoem-me o pessimismo, mas não vejo nenhuma chance para o senhor John Maynard Keynes.
Ou os senhores acham que as razões políticas, econômicas e, principalmente,ideológicas, que levaram ao estraçalhamento do welfare state debilitaram-se com a crise atual? Não acredito.
Como Gramsci recomendava, devemos ser pessimistas na análise, e otimistas na ação.
As mudanças que levaram ao fim do Estado de Bem-estar Social tinham um objetivo muito claro: reduzir os comensais à mesa. Afinal, o Estado de Bem-estar Social não deixou de ser um Estado capitalista, uma sociedade de classes, com contradições de classe. E quando o pão tornou-se escasso, findaram-se todas as veleidades distributivistas. Aquela coisa híbrida, um pouco disso e um tanto daquilo, desapareceu e impôs-se a crua realidade de uma sociedade de classes, com cada qual em seu galho. Como dizia Joe, o encanador de Mc Cain, isso de distribuir riquezas é coisa de comunista.
Concentrar rendas, cortar gastos com saúde, educação, moradia, reduzir direitos trabalhistas, ou, como dizem eufemisticamente, “desregulamentar o trabalho”, aumentar a mais-valia são as defesas do modelo fracassado.
Acredito, no entanto, que a crise fortaleça os nossos pontos de vista, o ponto de vista daqueles que estão comprometidos com a vida e o destino de nossa gente, com as pessoas. Se não temos a pretensão de eliminar as desigualdades, nas quadras deste sistema, podemos reduzir essas desigualdades, fazer com que o mundo seja menos áspero, menos brutal.
A crise, enfim, é a grande oportunidade para discutir e formular alternativas, para buscar um outro caminho, para construir esse outro caminho. Esta crise tem que nos levar a um novo modelo de Estado.
De todo modo, como a crise está aí, devemos pensar o que fazer agora, que medidas para enfrentar, no curto prazo, os efeitos da dêbacle.
Submeto à discussão algumas idéias. Não são originais, mas são as melhores que surgiram até agora.
Por exemplo, a estatização do crédito. Em vez de ficar repassando dinheiro para os bancos investirem em Letras do Tesouro, o Estado deve assumir a condução de uma política de financiamento extremamente agressiva, forçando também os bancos a abrirem linhas de crédito para o empresariado brasileiro, especialmente para a indústria. Cadê a famosa política industrial que nunca sai do papel? É possível fazê-la deixar de ser letra morta, com o direcionamento do crédito, com o seu controle. Afinal, sem industrialização não há desenvolvimento, como é óbvio.
É a encruzilhada de nosso destino como nação. Fortes, maciços investimentos industriais, criando com isso condições para o desenvolvimento real, ou selamos a nossa história como meros produtores de commodities agrícolas, consolidando a nossa augusta presença no mundo subdesenvolvido, do atraso, da periferia. O Brasil reduzido a espaço para as plantations das multinacionais.
Fico imaginando a reação de alguns setores a propostas como essa. Fala-se em estatizar e já se notam ataques de urticária incomodando as patrulhas neoliberais, em especial em nossa gloriosa mídia, sempre alerta, eternamente vigilante. Pouco se dá que os países centrais façam exatamente isso. Eles podem, aqui é sacrilégio.
Além do mais, condoem-se, apiedam-se dos bancos. Ainda que, no terceiro trimestre deste ano, os bancos tenham lucrado mais que todos os outros setores da economia somados. Isso mesmo, os ganhos de 15 bancos foram superiores aos ganhos de 201 grandes empresas não financeiras.
Quando a agiotagem, os juros, a especulação dão mais resultados que a produção é sinal de que alguma coisa não vai bem. Citando Luiz Gonzaga Beluzzo, em uma entrevista à Carta Maior: “É preciso deixar de lado a esperança liberal de que os bancos vão agir em benefício da sociedade e do desenvolvimento. O Governo tem que injetar crédito na veia do setor produtivo (…)”.
Desenvolvimento industrial e investimentos em infra-estrutura.
Há quantos séculos clamam-se por investimentos em infra-estrutura, em nosso país? É uma dessas ladainhas que se repetem enfadonhamente há tanto tempo. Pois bem, ainda hoje, 60 por cento de nosso território não são acessados por estrada de ferro, rodovia ou avião. E não têm energia elétrica ou telefone. Não existe nenhuma chance de construirmos uma economia forte, um país plenamente desenvolvido, socialmente equilibrado com deficiências de infra-estrutura tão grandes.
Outro ponto é o controle do câmbio. Centralização e controle. Um país que pretenda ser zeloso de sua soberania, senhor de suas decisões na área econômica, não pode deixar o câmbio solto, sem vigilância, submetido aos azares da sorte. Como propõe o professor Lessa: todas as operações cambiais deveriam ser centralizadas no Banco do Brasil, cabendo ao Banco Central esclarecer as circunstâncias dos fluxos. O país precisa saber, sua soberania exige que saiba, as condições de todas as operações de câmbio.
Acrescentaria aqui mais uma proposta: a desoneração do consumo. Uma reforma tributária que diminua os impostos sobre os bens de consumo que o salário compra. Estou fazendo isso no Paraná. Estou reduzindo de 25 e 18 para 12 por cento o ICMS sobre 95 mil produtos de consumo dos assalariados. Ao mesmo tempo, para equilibrar a arrecadação, elevo alíquotas de produtos que não influam diretamente sobre os preços do que os assalariados consomem.
Numa circunstância como essa, é fundamental manter e estimular o consumo, o que significa manter a produção, manter os empregos.
Enfim, a parte que nos cabe é empreender o nosso próprio projeto de desenvolvimento. Ao tempo que em tomamos medidas que diminuam o impacto da crise sobre nós, devemos desatrelar o nosso destino da globalização neoliberal.
Temos nas mãos uma dessas chances raras que o destino reserva aos povos: o petróleo do pré-sal. Esse petróleo tem que ser da Nação. Extraído e refinado pela Petrobras, é verdade, que deve receber por isso, é verdade, mas cujo resultado financeiro final deve ser apropriado pela Nação e aplicado em seu projeto de desenvolvimento.
A pergunta que fica é se a crise levará os ditos países centrais, com o concurso dos tais emergentes, a adotar medidas de controle do capital financeiro. Confesso ceticismo. Sempre desconfio da excessiva carga dramática desses momentos. Essa eletricidade aos poucos se dissolve e, por fim, impõe-se a solução lampedusiana, gattopardiana.
Da mesma forma que mantenho meus pés devidamente atrás quando ouço falar em colapso norte-americano, fim do império e coisas do gênero, que mais expressam desejos, aspirações que a realidade dos fatos.
Termino com uma citação de Noam Chomsky, que resume bem o que foi – e ainda é – a doutrina que sustenta o fundamentalismo do livre mercado. Segundo ele, a liberalização financeira teve efeitos muito além da economia. Constituiu-se também em uma arma poderosa contra a democracia. O movimento livre dos capitais criou um verdadeiro “parlamento virtual” de investidores e credores, que controla de perto os programas governamentais e “vota” contra esses programas, quando os considera “irracionais”, e são “irracionais” quando beneficiam o povo, a nação, e não o poder privado, os especuladores.
Queria ainda fazer algumas observações sobre o comportamento da nossa mídia diante da crise. Depois de tanto ridículo, de tanto vexame, será preciso?
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