Editorial, Estadão
O objetivo do processo penal é identificar a autoria e materialidades de tipificados crimes, para que sejam devidamente punidos. Só com esse minucioso trabalho de investigação é possível combater a impunidade, que tanto mal causa ao País. Pois bem, diante da profusão de denúncias e delações no âmbito da Operação Lava Jato, tem-se às vezes a impressão de certo descuido em relação à necessária diferenciação das condutas investigadas, como se tudo fosse a mesma coisa. Tudo é genericamente classificado como propina.
Em entrevista ao Estado, o jurista Célio Borja, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-ministro da Justiça, adverte para essa perigosa generalização. “A responsabilidade penal depende de prova. As delações são apenas a narração de fato que pode ser criminoso ou não. Às vezes não é criminoso. Por exemplo, dizer que o candidato recebeu doações. É preciso provar que o candidato sabia que as doações vinham de fonte ilícita. Mas ninguém se preocupa com isso. Pelo fato de ter sido citado em delação, ele acaba no rol dos culpados”, disse Célio Borja.
Não se trata de uma filigrana jurídica. Quando um delator afirma que deu dinheiro de caixa 2 da sua empresa à campanha de determinado político, ele está confessando que praticou uma ação ilegal – manter recursos econômicos não contabilizados e indevidamente fora do alcance do Fisco. Dessa sua confissão não decorre necessariamente a prática de uma ilegalidade por parte de quem recebeu dinheiro daquela fonte.
Doar dinheiro proveniente de caixa 2 é uma ação. Outra ação, de natureza diversa, é o recebimento desses valores. Não cabe a quem recebeu dinheiro para sua campanha política comprovar que o doador obteve esse dinheiro de forma lícita. Isso é responsabilidade do doador. Quem recebe a doação responde tão somente pela forma como recebeu a doação. Por exemplo, se esses valores foram contabilizados perante a Justiça Eleitoral.
Outra possível ilegalidade nessas transações de recursos econômicos entre empresas e partidos políticos é a simulação de doação, quando na verdade o que houve foi, por exemplo, extorsão – gente aproveitando de suas funções públicas para exigir que empresas fizessem doações a seus partidos políticos. Nesse caso, haveria a chamada corrupção passiva, a que o Código Penal atribui a pena de reclusão de 2 a 12 anos, além de multa.
Como se vê, são condutas diversas, ainda que todas possam, de forma generalizada, ser descritas como doações eleitorais ilegais, por haver algo nelas em dissonância com a lei. Cabe ao poder público identificar com precisão cada conduta, para que cada uma receba o tratamento que merece, de acordo com a lei.
Generalizar condutas, como se todas tivessem a mesma gravidade, é a negação do processo penal, cuja finalidade é justamente identificar, com provas, as condutas e seus autores. É, portanto, deletério chamar tudo genericamente de propina. Por dar a entender, mesmo sem provas concretas, que todo mundo envolvido nessas doações é culpado, esse modo de proceder fere o princípio da presunção da inocência. Essa inversão tem sido tão frequente que parece caber ao investigado provar sua inocência, quando o bom Direito aponta exatamente para o lado oposto. É o Estado que deve provar a culpa dos acusados.
Certamente, é mais fácil para a Polícia Federal e o Ministério Público afirmar que tudo é propina, já que, nesse caso, estariam isentos de buscar as provas respectivas. No entanto, é exatamente esse o trabalho que lhes cabe, até mesmo porque as delações apontam apenas, muitas vezes, para ilegalidade originariamente praticada por quem doou.
Como alguns procuradores rapidamente perceberam, incriminar todas as doações tem também reflexos diretos sobre a política e pode, em último termo, levar a uma devastação dos partidos políticos. O que deveria ser ocasião para extremar a prudência, identificando com maior rigor cada conduta, foi motivo para que alguns – essa é a impressão que dão – se sentissem desobrigados de identificar as condutas. Com essa generalização, estariam sendo apartidários, dizem. Ora, seu trabalho, pago pela sociedade, deve ser guiado pela lei, e não por opiniões políticas.
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