Dom Odílio P. Scherer
Em Roma prosseguem os trabalhos da 14.ª assembleia-geral ordinária do Sínodo dos Bispos, organismo criado pelo papa Paulo VI, em 1965, para consultar os representantes do episcopado católico de todo o mundo sobre diversas questões. O papa Francisco quis que, desta vez, a assembleia se dedicasse ao tema da vocação e missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo. Afinal, qual é o papel da família, no entender da Igreja?
A cultura contemporânea questiona e, de alguma forma, também abala algumas das convicções mais elementares sobre a pessoa humana, o casamento e a família. Já não é clara para todos a razão de ser da família; muitos deixam de se casar e de constituir família, por acharem que ela traz mais problemas que soluções. Buscam-se até vias alternativas ao matrimônio, equiparando ao casamento entre um homem e uma mulher também a união de duas pessoas do mesmo sexo.
A indissolubilidade e a unidade do vínculo matrimonial, como também a fidelidade estrita dos esposos, parecem coisas ultrapassadas e até a procriação se tornou um elemento secundário. A legislação de muitos países assemelhou o matrimônio aos pactos transitórios, que se podem dissolver com a mesma facilidade com que se desfazem certos contratos de interesse comercial.
A questão, porém, é mais profunda. Passamos por uma séria crise cultural, que afeta diretamente a compreensão sobre o ser humano, o casamento, as realidades familiares e as relações humanas básicas; conceitos antropológicas consolidados tornaram-se líquidos e se estão vaporizando cada vez mais. A própria sexualidade “binária”, entendida normalmente como masculina e feminina, é vista por alguns como uma imposição insuportável da natureza à autonomia e à liberdade de escolha do indivíduo.
A pergunta é se isso tudo veio para ficar ou não passa de uma onda momentânea, que poderá ser superada com mais um pouco de tempo e paciência. As ousadas “inovações” de certo pensamento antropológico, com suas consequências, não deixam de revelar suas fragilidades. A afirmação extrema da autonomia e da liberdade individual transforma o ser humano numa mônada, sem abertura para relações humanas enriquecedoras, como o casamento, a família e as iniciativas altruístas.
Empenhar-se num laço estável com alguém parece pouco atraente porque isso implicaria a limitação da própria liberdade. Ter filhos, assumir responsabilidades sobre outros, inclusive com renúncias e sacrifícios pessoais, contradiria o ideal de felicidade centrado na satisfação do próprio “eu”, acima de tudo…
No entanto, será que semelhante atitude diante da vida pode levar à felicidade e à realização madura e frutuosa da existência? O resultado final não será a solidão, o vazio e uma amarga experiência de fragilidade? Quem deixou de partilhar com generosidade a própria vida poderá confiar na generosidade de outros?
No sínodo, a Igreja Católica faz a sua reflexão sobre o casamento e a família e também deseja dizer uma palavra sobre as situações novas e complexas enfrentadas por essa “célula básica da sociedade”. Onde encontrar base sólida para dar orientação e sentido ao casamento e à família? O certo é que essas realidades, apesar dos seus diversos revestimentos culturais entre os povos e ao longo da História, não surgiram porque nós as inventamos a partir do nosso arbítrio: o próprio ser humano, sua sexualidade, o casamento, a geração de filhos, a paternidade, a maternidade e a família existem independentemente de nossas teorias e decisões sobre elas e têm um sentido próprio, que o homem precisa descobrir e acolher, sem a pretensão de ser, ele próprio, o autor de si mesmo.
Casamento e a família, antes de serem realidades reguladas pelo Estado e pela própria Igreja, já existem a partir de uma base natural, que revela a intenção boa do Criador: “Deus viu que era muito bom tudo o que havia feito” (cf Gn 1,31). Mediante o olhar da fé, iluminado pela Palavra de Deus, podemos desvendar o valor primordial da união matrimonial e da família e chegar também ao seu arquétipo, o próprio amor de Deus, e entrever seu horizonte mais luminoso, a beatitude final em Deus.
A vocação da família está inscrita na própria natureza do homem e da mulher, que se atraem para a união. Esse chamado ao casamento e à família está expresso de maneira figurativa no poema bíblico da criação do casal humano. Deus compadeceu-se da solidão de Adão, que vivia no Jardim do Éden, rodeado de plantas, animais e seres de todo tipo, mas, entre esses, “não encontrou nenhum que lhe correspondesse”. Então, Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só”. E criou a mulher, apresentou-a ao homem, que se alegrou e a reconheceu: “É carne da minha carne e osso dos meus ossos!”. Adão, que não se identificou com nenhum dos outros seres, viu em Eva alguém semelhante a si; os dois se correspondiam (cf Gn 2,1824).
Homem e mulher, portanto, foram feitos um para o outro e, na complementariedade recíproca, está a sua vocação, da qual também decorre a missão de ser um para o outro, interessar-se pelo bem recíproco, tornar fecundo seu amor e cuidar do fruto desse amor. A família torna-se também a base das relações humanas na grande sociedade e para a própria humanidade, que também é uma grande família.
Poderíamos imaginar uma sociedade sem base na família? O papel da família é profundamente humanizador; apesar de todos os limites e problemas que possa enfrentar, ela permanece um bem inestimável para a pessoa e para a comunidade humana. Se a sociedade descuidar da família, colherá muitos problemas. E aqui está um dos objetivos do sínodo: lembrar que é preciso zelar pela saúde da célula básica do grande corpo social. Cuidar bem da família é cuidar do bem de toda a sociedade.
Dom Odílio P. Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo
Foto: CNBB
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