As redes maliciosas para divulgação de notícias falsas colocam em risco as eleições municipais de 2020 — além de terem influenciado o último pleito no Brasil. Um indicativo é a descoberta de que seguem ativas 80% das 1.690 contas do aplicativo de mensagens WhatsApp usadas por robôs para a disseminação de dezenas de milhares de mensagens contra os adversários de Jair Bolsonaro na última eleição. O mapeamento foi feito pelos grupos de ativismo digital Programadores Brasileiros pela Pluralidade e Democracia e Hackers pela Democracia. No âmbito jurídico, autoridades tentam puxar o fio dessa intrincada meada executada por empresas de comunicação e marketing digital que operam fora dos limites legais.
Para evitar as fraudes, o aplicativo de mensagens WhatsApp baniu 1,5 milhão de contas brasileiras em definitivo ou temporariamente, entre outubro de 2018 e setembro de 2019. As suspeitas é de que as contas eram usadas para disseminação de fake news e discursos de ódio para diferentes partidos. O WhatsApp detectou que algumas contas chegaram a distribuir 14 mensagens em apenas 30 segundos, o suficiente para concluir que eram robôs. De acordo com a empresa, 75% dos banimentos se dá de forma automática, mediante monitoramento de atividade, mas sem vasculhar o conteúdo das mensagens, que seguem privadas.
Tropas virtuais
Em São Paulo, uma das empresas de marketing encarregadas de disparar mensagens para candidatos do PSL durante e depois das eleições entrou na mira do Ministério Público Regional Federal. Documentos aos quais ISTOÉ teve acesso mostram pedidos de investigação junto ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Morais. Há um inquérito em andamento no STF contra ameaças e calúnias aos ministros. Os investigadores descobriram que o trabalho dessas empresas só ocorre mediante a prática de um crime anterior, que é a aquisição ilegal de mailings com dados atualizados de clientes de operadoras de telefonia móvel — a prática fere a Lei de Proteção de Dados.
Com os números de celulares, e-mails, CPFs e CEPs é possível disparar mensagens direcionadas para determinados públicos em regiões, cidades, bairros e até vizinhanças mapeadas pelos partidos e analistas digitais. Como a inteligência artificial não resolve tudo, esse trabalho seria amparado por uma militância local — remunerada ou não —, que se encarregaria de divulgar inicialmente as mensagens mentirosas. Aos poucos, os perfis e as contas fal sas seriam admitidas em grupos de WhatsApp e compartilhadas por Facebook e Twitter, entrando em difusão viral, até o processo se repetir em outro grupo ou comunidade. E assim por diante. O que não se tinha certeza era da necessidade da presença massiva de ativistas.
As conclusões apontam que desde as eleições municipais de 2012 são oferecidos serviços de marketing digital para viralização de conteúdos. Com a sofisticação dos programas de disparo de mensagens via rede social, esse trabalho ficou mais fácil e eficiente. Depois das últimas eleições, foi registrada uma mudança de comportamento. Em vez de mensagens contra adversários, o conteúdo passou a ser de apoio às decisões do presidente e à sua reeleição em 2022. Não foi preciso ir longe. Uma busca nos comentários nas reportagens de ISTOÉ postadas no Facebook indica a presença de robôs e militantes que puxam assuntos “off topics” (fora do tema) a favor de políticos, em especial Bolsonaro. Há também muita gente de verdade que acredita no presidente e faz comentários legítimos, mas raramente em assuntos não relacionados com o conteúdo.
“É possível que nem saibamos com rapidez qual conteúdo é falso”, Francisco Rolfsen Belda, que analisa credibilidade e mídia na Unesp
Atualização do Código Eleitoral, a nova Lei das Fake News será válida para as próximas eleições municipais e prevê penas de dois a oito anos de prisão para quem acusar falsamente candidatos para prejudicar sua votação. A condenação aumenta para quem agir anonimamente. É um progresso, mas será difícil punir os autores, que agem no anonimato do mundo virtual, muitas vezes hospedando sites e blogs no exterior, de onde são puxados links para perfis falsos.
No Congresso, está em andamento uma CPMI sobre o tema. Os parlamentares convocaram para depor o deputado federal Alexandre Frota (ex-PSL, agora PSDB-SP), que afirmou publicamente saber como funcionou a estratégia de desinformação da “milícia digital” de Bolsonaro na campanha. A comissão de deputados e senadores também solicitou ao Facebook que entregue um relatório sobre as investigações da empresa que resultaram na suspensão de 196 contas e 87 perfis, em julho do ano passado. O Facebook nunca deu detalhes, mas chegou a divulgar que havia “uma rede coordenada que se ocultava com o uso de contas falsas”.
Entre estas estariam páginas do Movimento Brasil Livre (MBL), que na ocasião se declarou vítima de “censura”. A incitação aos crimes de ódio e o ciberbullying contra autoridades e cidadãos em evidência também estão na conta da CPMI. Ninguém poderá reclamar de falta de pluralidade no trabalho, já que entre os integrantes da comissão está o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), pródigo em publicar declarações desinformativas, como as que divulgou contra a ativista adolescente sueca Greta Thunberg.
A perspectiva é que a internet e as redes sociais se tornem um campo de batalha política ainda mais feroz. O relatório do Oxford Internet Institute intitulado “Tropas Virtuais” afirma que partidos e governos tendem cada vez mais a espalhar desinformação contra seus opositores, ameaçando a democracia.
Justiça Lenta
Para o diretor do Departamento de Análise de Políticas Públicas (DAPP) da FGV, Marco Aurélio Ruediger, o próximo passo das campanhas de mentiras virá da computação gráfica avançada, com a criação de deep fakes, onde personagens são inseridos em cenários — como em filmes — ou declarando frases que jamais diriam. Basta imaginar Bolsonaro defendendo o desarmamento civil ou Lula clamando pelo fim do Bolsa Família. “Tudo será mais agressivo, ameaçador e destrutivo”, diz Ruediger. Para o professor de pós-graduação em mídia e credibilidade da Unesp, Francisco Rolfsen Belda, a Justiça Eleitoral e o Estado não têm condições de agir de acordo em situações críticas, como em campanhas eleitorais. “É difícil legislar de forma punitiva. É possível que nem saibamos com a rapidez necessária qual conteúdo é falso”, diz. Basta lembrar que nem mesmo o Congresso americano soube como lidar com as denúncias sobre as práticas maliciosas adotadas na campanha de Donald Trump à presidência dos EUA.
Robôs, ciborgues e ativistas
A inteligência artificial não age sozinha. Para espalhar mentiras é preciso contar com outras tecnologias e a motivação de disseminadores, sejam eles militantes, profissionais ou meros ingênuos
Bots
“Robôs” são programas que analisam o comportamento dos usuários da internet. Os de uso malicioso estão, em especial, nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens, como o Twitter. Por meio deles é possível enviar grande número de mensagens e replicar conteúdos. É fácil localizá-los no Facebook, pois seus posts são repetitivos e as imagens não indicam vida social
Trolls
São virtuais, mas podem ser operados por humanos em alguns momentos, para angariar credibilidade ou atingir algum propósito específico. Também são conhecidos como ciborgues ou socketpuppets (fantoches). Esses perfis costumam se valer de fotos roubadas de sites de notícias ou bancos de imagens. Como seus administradores são contratados e precisam cuidar de dezenas de contas simultaneamente em diferentes plataformas, costumam apresentar uma linguagem limitada e pouca interação. Servem para “animar” debates e espalhar conteúdos duvidosos.
Ativistas seriais
São pessoas que dedicam boa parte de seu tempo compartilhando e retuitando conteúdos em diferentes grupos. Geralmente são desempregados ou quem possui tempo sobrando para se engajar com afinco em alguma causa. Eles disseminam conteúdos afeitos às suas crenças entre grupos, sem checar a veracidade. Assim, dão “credibilidade” involuntária às fake news. Alguns são remunerados, servindo como “robôs políticos” ao permitir que seus perfis sejam ativados por programas externos de disseminação de conteúdos e acionamento de “likes”. Há também quem adote perfis inventados
Fonte: Universidade do Sul da Califórnia (EUA)
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