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Entre o joio e o joio

Entre o joio e o joio

Carlos Ayres Britto

Importa, sim, que os inquéritos policiais a serem abertos sob a supervisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, busquem diferenciar os diversos modos de uso dessa erva daninha que atende pelo nome de caixa dois.

É que, em tese, há um caixa dois que sai por aí a contaminar as normas de direito eleitoral, da ordem tributária e da ordem financeira do país, mas impondo a si mesmo um reverente limite: guardar toda distância do Código Penal. Ficar do lado de fora da cidadela dos “dinheiros, bens e valores públicos” (para me valer do parágrafo único do art. 70 da Constituição).

Ao passo que a segunda e básica modalidade de caixa dois ultrapassa esse limite. É uma não contabilização de recursos (tanto quanto a primeira), porém praticada em ambiência negocial ou de compensações argentárias entre doadores e donatários. Compensações, ajunte-se, na base do “toma lá, dá cá” às custas do erário.

Com o que passam a se esgueirar pela coxia de tais negociatas as figuras penais da corrupção ativa e passiva, do peculato e da lavagem de dinheiro, para dizer o mínimo.

Não se trata, porém, de separar o joio do trigo. A separação é entre o joio e o joio mesmo. Um tipo de joio frente ao outro, porque o segundo deles é ainda mais daninho à ordem jurídica.

É ainda mais atrevido no seu propósito de conspurcar o jogo das disputas eleitorais dos cargos públicos. No avançar, de cutelo na mão, sobre o nervo e a carne do princípio ético-democrático da correlação de forças na disputa desse heterodoxo concurso público de nome “eleição popular”.

É ainda mais prejudicial por mandar às favas todo e qualquer resquício de pudor nas relações entre o poder político e o poder econômico. Principiando por derruir todo o conteúdo do parágrafo único do artigo 350 do Código Eleitoral (proibitivo dessa falsidade documental que é deixar de fazer o registro formal do ingresso de valores na contabilidade dos partidos e dos candidatos) e prosseguindo a tratorar as assemelhadas proibições que já fazem parte da ordem financeira, da Receita Federal e do Código Penal brasileiro.

Cuida-se de uma diferenciação necessária, porque de justiça punitiva. Mas não a ponto de que o reconhecimento da maior gravidade da segunda venha a implicar um fechar de olhos para a necessidade de também apurar com toda isenção e presteza a primeira.

Cada qual no seu quadrado normativo. Tampouco aproveita a qualquer das duas ilicitudes o fato da sua corriqueira prática. Ao contrário, a longa tradição da sem-cerimônia com que são perpetrados os dois ilícitos é que exige um combate da maior eficácia possível.

Uma e outra modalidade de caixa dois traduzem um flerte com o diabo-a-quatro. A banalização do mal é pior que o próprio mal, sentenciava Hannah Arendt.

Por isso que urge estancar essa ferida hemorrágica no peito dos nossos costumes. O que por mais tempo cavalgou no lombo das malfeitorias jurídicas é que tem de ser apeado com todo vigor e rapidez.

Sem nenhum prejuízo, também por evidente, da fiel observância do devido processo legal substantivo. Tipo de processo que incorpora as garantias constitucionais do contraditório e a ampla defesa, assim no plano das provas quanto da argumentação das partes.

O que se espera, agora, é que as três pertinentes instâncias de poder (a policial, a ministerial pública e a judiciária) atuem com total isenção nos marcos das respectivas competências constitucionais e legais.

Sem mesclar jamais critérios técnicos de atuação com critérios políticos. Sem outro decidido empenho que não seja o de aplicar o provérbio latino: Fiat justitia et pereat mundus. A traduzir o seguinte: “Faça-se justiça e pereça o mundo”, porque, em verdade, o mundo somente perece com o perecimento da Justiça.

Tudo o mais não passa de aparência de perecimento. Para não dizer simulacro.

Carlos Ayres Britto, doutor em direito constitucional pela PUC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foi presidente do Supremo Tribunal Federal.