Em apenas um ano, o programa Bolsa Família voltou a enfrentar um antigo problema. Desde junho, a fila de pessoas aguardando pelo benefício saltou de zero, patamar que se encontrava desde 2018, para 494.229 famílias. A espera é a maior desde 2015, quando mais de 1,2 milhão de famílias aguardavam o auxílio. São famílias cujo perfil de renda é compatível com programa e já estão cadastradas — mas continuam na miséria e sem a ajuda de R$ 89 por pessoa. As informações são de Pedro Capetti e Elisa Martins n’O Globo.
Os dados foram obtidos pelo GLOBO por meio da Lei de Acesso à Informação, após quatro meses de demanda junto ao Ministério da Cidadania, que só liberou a informação depois de determinação da Controladoria-Geral da União (CGU).
Entre janeiro de 2018 e maio de 2019, a média mensal de novos benefícios concedidos era de 261.429. Desde junho, esse número caiu drasticamente, e hoje esse número está em 5.667. Em nota, o Ministério da Cidadania afirma que a redução de benefícios se deu por questões orçamentárias e combate a fraudes, e cita ainda uma reformulação do programa, em curso na Esplanada.
Essa redução fez com que a entrada de famílias, que deveria ocorrer em até 45 dias após a inclusão e análise dos dados inseridos, passasse a até mais de seis meses, segundo técnicos que trabalham nesse setor.
A volta da fila no principal programa de erradicação da pobreza do país é fruto do enxugamento dos beneficiários no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, período em que o Bolsa Família chegou a atingir o maior número de assistidos desde 2004, quando foi criado. Em maio, 14,2 milhões de famílias recebiam um rendimento médio de R$ 190. Desde então, apesar de no ano passado o governo ter concedido o 13º salário, o programa vem encolhendo mês a mês, tendo atingido em dezembro o menor patamar de famílias beneficiárias desde 2011: 13,1 milhões.
Em julho do ano passado, a cuidadora de idosos Marlene de Almeida, de 46 anos, deu entrada no programa, devido à demora em encontrar um trabalho fixo. Desde julho de 2018, quando seu patrão morreu, ela busca uma nova colocação, fazendo bicos “quando aparecem”, para complementar a renda na casa em que mora com a filha de 7 anos e o marido, ajudante geral em um bar. Mesmo sem receber a carta, ela foi na semana passada ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras), no Centro de São Paulo, em busca de informações:
— Se não mandaram carta, não tem jeito, não adianta vir. Mas achei que teria direito (ao Bolsa Família). Conheço gente que recebe. Somos de baixa renda. Temos filha, e ela estuda.
Avanço da miséria
Sem recursos, a saída de muitos é contar com a ajuda e solidariedade dos vizinhos, como Yasmin Pereira, de 19 anos, moradora do Complexo da Maré, no Rio. Mãe de uma menina de 10 meses e de um garoto de 3 anos, ela se viu forçada a pedir ajuda em roupas e alimentos, distribuir currículos e ir ao Cras semanalmente em busca de uma resposta a seu pedido, apresentado em julho.
— Estou morando de favor. Minha vida é ir juntando R$ 10, R$ 20, R$ 30 para conseguir dar comida para as crianças. Não posso deixar eles com fome. Se não fosse o apoio dos vizinhos, não sei o que seria de mim — lamenta.
O ressurgimento da fila ocorre em um momento crítico no combate à pobreza. Em 2018, o número de miseráveis (considerados aqueles que vivem com menos de R$ 145 por mês) bateu recorde: 13,5 milhões, segundo o IBGE. Somente durante a crise econômica, mais de 4,5 milhões de brasileiros foram empurrados para essa situação, um aumento de 50% em quatro anos.
— Na crise, seis milhões de pessoas passaram a viver com renda de trabalho zero. E o Brasil encurtou a rede de proteção quando ela era mais necessária — afirma Marcelo Neri, diretor do FGV Social.
Ex-usuário de drogas em reabilitação em uma clínica em Japeri, na Região Metropolitana do Rio, Alexander Garcia, de 24 anos, enfrentava a fila no Cras em Bonsucesso, na Zona Norte, em busca do benefício para arcar com parte dos remédios do tratamento, um gasto em torno de R$ 900 por mês, hoje pagos com ajuda de sua mãe.
— O beneficio é pouco, mas é a chance de comprar os meus remédios e conseguir mais uma vitória nesse tratamento — afirma Garcia.
A dificuldade de entrar no programa não se restringe aos novos beneficiários. Quem saiu não tem conseguido retornar. Desde junho, nenhum ex-beneficiário obteve nova concessão do Bolsa Família. Para efeito de comparação, entre 2015 e 2018, período mais rigoroso da recessão, mais de 2,2 milhões de pessoas retornaram ao programa.
Para quem já recebe, há o problema da queda no poder de compra, corroído pela inflação. Desde 2018, o benefício está em R$ 89, pois, diferentemente de outros programas do do governo, o Bolsa Família não tem reajuste automático, pois não está indexado à inflação.
Hoje, a limitação orçamentária de R$ 30 bilhões — o mesmo valor de 2019 — não permite grandes alterações no cenário a curto prazo, por causa do teto de gastos. Tanto um possível reajuste quanto uma nova concessão do 13º, como ocorreu no ano passado, estão fora dessa previsão. Estuda-se a concessão de um “bônus” financeiro aos estudantes aprovados com média mínima de 7. Mas hoje não há um sistema nacional que acompanhe as notas escolares.
— Não faz sentido cortar (o Bolsa Família), é um programa que custa 0,5% do PIB. Os efeitos podem ser a piora dos indicadores de pobreza e um impacto nos indicadores de segurança alimentar. Precisamos de articulação com outras iniciativas, mas não vemos isso na agenda — diz a pesquisadora Renata Mirandola Bichir, do Centro de Estudos da Metrópole.
O medo de ver os filhos, de 7 anos e 11 meses, passando fome atormenta Karem Bonfim, de 23 anos, há seis meses. Sem renda e vivendo de ajuda, ela se desdobra todos os dias para colocar comida em casa, no Complexo da Maré, e não deixar que a barriga vazia faça parte da vida da sua família. Em meio a luta diária pela sobrevivência, ela visa conseguir um emprego em um mercado que ainda esboça recuperação. Mas a falta de recursos prejudica até mesmo a busca de uma oportunidade.
— Minha vida hoje é pedir ajuda na rua e fazer uns bicos. Se o Bolsa não vier, vou ter que dar meus filhos para os outros. Eles não podem passar fome.
No Brasil há cinco meses, a venezuelana Leusmirys Carolina trocou Manaus por São Paulo em busca de trabalho. Em Manaus, onde ficaram um ano, ele trabalhou como ajudante de cozinha. Leusmirys é engenheira civil e Victor, mecânico. Com o marido e dois filhos, pediu o Bolsa Família na semana passada. Mas terá de aguardar:
— Disseram que teremos que esperar uns três meses, e mais um para chegar o cartão”
Se não fosse o apoio de vizinhos, o destino de Yasmin Pereira, de 19 anos, e da pequena Pérola, de 10 meses, seria a fome e a rua. Desempregada, ela hoje depende da ajuda de amigos para ter comida e um teto. Desde julho, ela espera o Bolsa Família, enquanto tenta conseguir seu primeiro emprego. Na última sexta, foi ao CRAS, centro de triagem dos benefícios, pela quinta vez em busca de uma resposta.
— Falam que só em fevereiro. Se dependesse só disso, estaria passando fome.
Os R$ 89 que recebe do programa Bolsa-Família são a única renda que Cleusa Maria Teodoro da Silva, hoje desempregada, diz receber. Ela trabalhava como funcionária de limpeza e acompanhante de idosos, mas não encontra mais trabalho. Há algum tempo, fazia diárias de faxina. Mas conta não ter condições físicas de trabalhar com limpeza por conta de um problema nos rins. Há um ano e meio, Cleusa recebe o benefício, mas tem medo de perdê-lo:
— Eles bloquearam por um tempo (o benefício). Nunca explicaram por quê. Depois voltaram. Vivo em estado de miséria. Não tenho saúde boa, nem emprego.
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