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‘É como mergulhar na idade das trevas’, diz virologista sobre volta do sarampo

Virologista da UFRJ e assessora do Comitê de Organização Mundial de Saúde (OMS) para a pesquisa com o vírus da varíola, Clarissa Damaso considera a volta do sarampo ao Brasil inadmissível. Até o momento, 472 casos foram confirmados no país. A doença estava erradicada há dois anos. Segundo a especialista, governo e sociedade seriam responsáveis pelo problema. ‘Eu tive pólio. A vacina deve ser valorizada todos os dias’, diz carioca de 78 anos que ficou com paralisia. As informações são d’O Globo.

O que representa a volta do sarampo ao Brasil, considerado erradicado aqui pela OMS em 2016?
Um retrocesso enorme para o país. Andamos para trás, voltamos aos anos 80. É como mergulhar na idade das trevas, jogar fora anos de trabalho. É inadmissível que tenhamos chegado a esse ponto. Só ficamos sabendo porque a doença voltou. E só voltou porque o vírus encontrou gente não vacinada em seu caminho.

O que teria acontecido se o vírus tivesse entrado com os imigrantes venezuelanos, mas as pessoas estivessem vacinadas no Brasil?
Com cobertura alta, haveria casos isolados de pessoas que não desenvolvem imunidade adequada. Não passaria disso, o vírus não circularia.

Falava-se que pólio e sarampo eram doenças do passado. Por que voltaram?
Porque não existe doença do passado. Existe doença controlada com vacina. Vivemos cercados por micro-organismos causadores de doenças à espera de oportunidade. A baixa cobertura vacinal é essa chance. Se deixa de existir o que a ciência chama de imunidade de rebanho, a doença volta. Vacinar é preciso.

O que é imunidade de rebanho?
É o nome que a ciência dá à vacinação da maior parte da população, a faixa de 95%. Isso faz com que o vírus não tenha condições de circular e protege aqueles que não podem se vacinar, como os muito idosos, pessoas com problemas no sistema imunológico ou outras doenças específicas.

Por que a cobertura vacinal caiu?
Está claro que não existe uma só causa, mas um conjunto delas, que passam por responsabilidade de governos e também da população.

Qual é a responsabilidade das autoridades de saúde, dos governos?
O Programa Nacional de Imunização (PNI) do Brasil sempre foi um exemplo para o mundo. Mas não basta que ele exista, as vacinas sejam recomendadas e estejam disponíveis. É preciso vigiar as coberturas, alertar quando baixam, fazer mais campanhas e, se for o caso, mudar estratégias. Horários e dias de funcionamento de postos, por exemplo, precisam ser compatíveis com a realidade da população.

E o papel da sociedade?
O brasileiro perdeu o respeito por essas doenças porque as novas gerações não conviveram com o flagelo que provocavam. Há uma ignorância sobre o passado. As escolas têm um papel nisso. E os pais precisam ter responsabilidade. Há médicos negligentes, que não recomendam as vacinas e não as cobram dos pacientes. Quando você descobre que há profissionais de saúde que não se vacinaram contra a gripe, vê que vivemos um momento terrível. É um horror que alguém que trabalha num hospital não esteja vacinado.

E qual o papel das “fake news”?
Elas são um problema grave porque as redes sociais potencializam o poder destrutivo de boatos criminosos. Por ignorância, preguiça e até descaso, muita gente acredita neles. Há uma série de tolices, como difundir que a vacina da gripe deixa a pessoa a gripada, o que é impossível. Há coisas nocivas, como fotos de crianças todas picadas por agulhas. Na verdade, se fosse possível tornar visíveis numa foto todos os vírus e bactérias que as cercam, você nem a veria porque vivemos cercados por micro-organismos. Você prefere uma picada ou uma doença que mata e cega?

Qual o peso daqueles que se recusam a se vacinar?
Eu os vejo como criminosos porque deliberadamente espalham doenças, são uma ameaça à sociedade. Propagam doenças letais. Vacinar-se não é questão de opinião, opção, nem um direito individual. É uma obrigação do cidadão se vacinar e vacinar os filhos. Trata-se da saúde de toda a comunidade.

E a pólio?
Se não recuperamos logo a alta cobertura vacinal que tínhamos até alguns anos atrás, viveremos a crônica de uma morte anunciada. A pólio tem sido combatida com sucesso com vacinação. O vírus selvagem só existe hoje no Afeganistão e no Paquistão. Mas ele não deixou de existir e, com os fluxos internacionais intensos, a propagação entre lugares longínquos não pode ser menosprezada. Em 2014, foi encontrado no esgoto do Aeroporto de Viracopos (Campinas), numa análise de rotina. Era de uma cepa procedente da Nigéria. E o que temos a fazer? Vacinação.

O quão contagioso o sarampo é?
É o mais contagioso micro-organismo causador de doença conhecido. Isso significa dizer, por exemplo, que, se uma pessoa infectada entrar num vagão de trem, todas os não vacinados ali serão contaminados.

Por que é tão transmissível?
Porque se transmite pelo ar, em gotículas invisíveis. Não precisa ter contato respiratório direto com secreção nasal ou saliva, como no caso da varíola. Já a pólio é transmitida pelo contato com água e alimentos contaminados, o que no Brasil, se não fosse a vacina, seria uma tragédia, pois a falta de saneamento no país é gravíssima.

O que sarampo, pólio e varíola têm em comum?
São doenças virais exclusivas do ser humano. E eles flagelaram a Humanidade desde sempre, mudaram o curso da História mais de uma vez. Quando aprendemos a desenvolver vacinas, mudamos o jogo.