Domingo passado, Dilma Rousseff saboreou um inesperado triunfo, servido no editorial de primeira página da Folha (“Nem Dilma nem Temer”, 3/4/16). Repetindo o que tantos pediram, sem sucesso, ao longo do último ano, o maior jornal do país envia uma mensagem decepcionante: o destino de uma presidente “que perdeu as condições de governar” deve depender, exclusivamente, da vontade dela mesma. “Eu jamais renunciarei”, retrucou a presidente, de bate-pronto. O tempo passou na janela, e só a Folha não viu.
As críticas do editorial à solução do impeachment oscilam pendularmente entre os registros da política e do direito. As “pedaladas fiscais”, razão jurídica perfeita para o impedimento, não preenchem o requisito político “numa cultura orçamentária ainda permissiva”. Os múltiplos “indícios de má conduta”, razão política irrefutável para a deposição constitucional, não preenchem o requisito jurídico pois “falta comprovação cabal”. A equação argumentativa da Folha foi formulada por um matemático decidido de antemão a rejeitar a alternativa do impeachment.
A raiz da posição do jornal encontra-se sorrateiramente explicitada em outro lugar: o impeachment deixaria “um rastro de ressentimento”, pois “mesmo desmoralizado, o PT tem respaldo de uma minoria expressiva”.
Tradução: a maioria da sociedade deve ceder à chantagem minoritária do “povo organizado”, aceitando um “novo normal” formado por violações jurídicas de baixo impacto político e crimes políticos ainda carentes de veredito jurídico. Mas, como é deselegante dizer isso, o editorial maquia suas manchas com o corretivo cremoso da inócua solicitação de renúncia ao mandato presidencial.
O tempo passou na janela. Antes das delações de Delcídio do Amaral e da Andrade Gutierrez, e antes da nomeação de Lula à Casa Civil, havia bons motivos para questionar o impeachment. Hoje, porém, à luz do dia, o Planalto comete sucessivos crimes de responsabilidade. Nas palavras do próprio editorial, “a administração foi posta a serviço de dois propósitos: barrar o impedimento, mediante desbragada compra de apoio parlamentar, e proteger o ex-presidente Lula e companheiros às voltas com problemas na Justiça”. Mas, estranhamente, a Folha descarta no nono parágrafo os crimes políticos que aponta no quinto. Na sequência, opera um salto argumentativo arbitrário, oferecendo a saída da dupla renúncia da presidente e do vice.
Temer não está engajado em operações de obstrução da Justiça. Mas, segundo a lógica sofística do editorial, o vice ocupa lugar idêntico ao da presidente, pois “tampouco dispõe de apoio suficiente na sociedade”. Da imputação decorreria o imperativo da renúncia simultânea de ambos, abrindo caminho para novas eleições presidenciais. Mas, apesar das virtuosas intenções declaradas, o apelo do jornal apenas oferece um pretexto farisaico aos deputados que, por motivos pecuniários ou ideológicos, ensaiam perfilar com o Planalto na votação do impeachment. Afinal, por que trocar seis por meia dúzia?
Todo o poder ao povo! A solução imaginada pelo editorial produziria um governo calçado na legitimidade eleitoral, não uma transferência de comando para o sócio menor da coalizão que nos conduziu a uma tripla crise, econômica, política e ética. Contudo, o caminho até a antecipação de eleições presidenciais não passa pelo atalho utópico da dupla renúncia, pois Dilma “jamais” renunciará. Igualmente, não passa pelo longo contorno do TSE e do STF, pois a cassação da chapa Dilma/Temer depende de julgamentos que só se concluiriam em 2017, gerando eleições indiretas.
Se o jornal quer mesmo que o povo decida, tem o dever de apoiar o impeachment –para, em seguida, solicitar a renúncia de Temer. A única alternativa é o túnel da anomia: Dilma até 2017, sucedida por um presidente escolhido pelo Congresso. E agora, Folha?
Foto: arquivo pessoal
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