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Dinheiro público financia iniciativa privada no desmonte das ferrovias

Dinheiro público financia iniciativa privada no desmonte das ferrovias

O engenheiro ferroviário Paulo Sidnei Ferraz, diretor do Senge-PR e com 30 anos de dedicados às questões de transportes, explica de que forma o BNDES aplica dinheiro nas concessionárias  que administram as ferrovias privatizadas, como a ALL

Faz quinze anos que o Brasil ouvia os governantes do turno anunciar a privatização de dezenas de empresas públicas, sob o argumento de que o Estado não tinha dinheiro em caixa para bancá-las — ainda que fossem estratégicas ao desenvolvimento nacional. Assim, privatizou-se a Rede Ferroviária Federal (RFFSA).

Alardeava o BNDES que o dinheiro da iniciativa privada jorraria em nosso sistema ferroviário, alimentando investimentos em melhoramentos das linhas, modernização das frotas de locomotivas, aumento do número de clientes e redução do número de acidentes, entre tantas maravilhas.
O que vemos, porém, é bem diferente.

Vemos, por exemplo, no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) uma mãe irresponsável, que abre o coração — e os cofres — aos grandes grupos financeiros, entregando dinheiro público que deveria ser investido em pequenas e médias empresas para gerar trabalho e desenvolvimento em regiões pobres.

Não é preciso ser especialista em logística para concluir, em 2009, que falharam as otimistas previsões dos arautos da privatização. Basta ver quantos bilhões de reais o BNDES aportou para socorrer as concessionárias do setor ferroviário, financiando o sucateamento do patrimônio público da ferrovia, a redução da capacidade de operação das malhas, demissões em massa, diminuição drásticas de clientes, redução da malha em operação e maquiagem de números que o governo federal anuncia como positivos.

Nos ultra-neoliberais anos 1990, o BNDES concluiu que uma dívida de cerca de R$ 3 bilhões era justificativa suficiente para privatizar a RFFSA, então dona de um patrimônio de U$ 20 bilhões. Passados 12 anos, o passivo patrimonial, judicial e ambiental acumulado pela viúva em consequência dessa decisão supera os R$ 20 bilhões. Do total, R$ 7 bilhões se referem a passivos trabalhistas, a maior parte decorrente de 35 mil demissões feitas pelos concessionários no início da operação privada.

É frequente vermos na mídia críticas ao programa Bolsa Família, em que o governo federal investe R$ 1 bilhão por mês para atender 12 milhões de famílias pobres brasileiras. Mas é raro, muito raro, ver alguém levantar a voz, revoltado, para denunciar as dezenas de bilhões de reais com que o BNDES presenteia grupos privados — alguns com sede em paraísos fiscais — para socorrê-los e ajudá-los a manter serviços públicos concedidos.

Não custa lembrar que o BNDES administra recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). E o mais estranho é que o dinheiro do FAT vai parar, via BNDES, o banco do “desenvolvimento social”, nas mãos de empresas que demitem trabalhadores e pioram as condições de trabalho de quem segue empregado.

Participação das ferrovias caiu
Em 1994, as ferrovias respondiam por 23,31% de toda a movimentação de transporte no Brasil, apontam dados da hoje extinta Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes (Geipot), vinculada ao Ministério dos Transportes.

Dez anos após a privatização, não se viu o alardeado desenvolvimento das ferrovias, como mostra o Anuário Estatístico 2006 da Confederação Nacional dos Transportes (CNT). Ao contrário — o documento mostrou que os trens engataram marcha à ré, e viram encolher sua participação na divisão da movimentação de transporte para 19,46%. Em miúdos — privatizadas as ferrovias, quem cresceu foi o transporte rodoviário.
Pior — 40% da malha ferroviária arrendada ao setor privado estão desativados, invadidos, depredados, tiveram trilhos roubados ou trocados por sucatas, num verdadeiro crime contra o patrimônio público, à propriedade do povo brasileiro. Isso é objeto de várias denúncias apresentadas à Policia Federal, aos Ministérios Públicos Estaduais e Federal em diversos pontos do País, à Procuradoria Geral da República e ao Tribunal de Contas da União.

Imagens apresentadas recentemente por emissoras de televisão que retratam surfistas ferroviários e saques a vagões de cargas retratam o total abandono que a ferrovia privatizada vive no Paraná. E é sempre bom lembrar que agora o BNDES, como sócio da concessionária, tem responsabilidade compartilhada por isso.

A modernização das locomotivas também ficou na promessa dos neoliberais dos anos 1990. As empresas privadas que operam o sistema ferroviário brasileiro importam locomotivas usadas, já velhas, com em média 25 anos de uso. Pagam por elas preços de sucata de ferro, já que se trata de máquinas estaleiradas, sem condições de rodar, em pátios de ferrovias no exterior por terem chegado ao fim de sua vida útil. Resultado — envelheceu a idade média da frota de locomotivas em operação no Brasil.

Um empresário da área de transportes defendeu há pouco tempo, em evento da Fetranspar, uma renovação radical da frota de caminhões brasileira, proibindo a circulação de veículos com mais de 15 anos de uso nos perímetros urbanos e com mais de 25 anos nas rodovias. Ora, se aplicássemos essa ideia — que recebeu o apoio da CNT — às ferrovias, nossos trens de carga deixariam de vez de circular.

Devagar, quase parando
A velocidade média comercial de transporte das cargas nos trens operados pela América Latina Logística — concessionária que opera a malha ferroviária no Sul do Brasil — não supera os 18 km/h. Isso é menos que a velocidade média de uma bicicleta, e embaraçoso e anti-econômico para essa pujante região do Brasil.

Ainda que os trens rodem devagar, os acidentes acontecem com frequência, ainda que muitos deles não chegam ao conhecimento da imprensa nem sejam contabilizados nas estatísticas da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Do total de 145 ocorrências registradas em 2007 pela ANTT nas linhas da ALL pela sistemática adotada após a privatização, quase 50% são de gravidade máxima, e causaram a morte ou ferimentos graves em 47 vítimas. Os dados constam de relatório da ANTT. E diga-se que, após a privatização, deixou-se de incluir na conta acidentes ocorridos em pátios de manobra e terminais de carga e descarga, o que causa distorções na base estatística.

Ainda assim, o BNDES decidiu em 2006 socorrer a ALL, destinando R$ 1,1 bilhão à compra de ações da empresa, para salvar a imagem de falso sucesso do processo de privatização. Esse montante equivale a 12,8% do capital da empresa. Pior — os papeis foram comprados quando tinham as cotações em alta, o que deixou mais um prejuízo nas mãos da viúva, uma vez que as ações da ALL chegaram a cair 70% após a intervenção do BNDES. Atualmente, mesmo com uma pequena recuperação, valem 55% menos que em 2008. Quem vai pagar o prejuízo?

Imagina-se que os dirigentes do BNDES sequer se deram ao trabalho de consultar os editais da Comissão de Valores Mobiliários nos documentos de lançamento de ações. Nesses relatórios, auditorias independentes alertam sobre vários riscos da operação da ALL. As auditorias explicam que a concessionária “opera sem todas as licenças ambientais necessárias, estourou limites de endividamento e tem em andamento processos indenizatórios e outras pendências” que no mínimo recomendariam a precaução de quem administra dinheiro público.

Pergunto — o BNDES avaliou as condições ambientais de operação da ALL? O BNDES foi a campo avaliar o estado de oficinas, edificações, pátios, dormentes, trilhos, enfim, do patrimônio público arrendado? O BNDES consultou relatórios da ANTT em que a ALL ocupa a última posição em satisfação dos clientes e a primeira em reclamações? O Ministério Público Federal irá cumprir seu papel, levando aos tribunais os responsáveis por esses prejuízos?

Se não fosse suficiente, o BNDES anuncia agora a liberação de mais R$ 2,15 bilhões para que a ALL faça o que é sua obrigação como concessionária de trens de carga e mantenha em boas condições o patrimônio público arrendado, invista em equipamentos e melhore as condições das linhas dilapidadas após o processo de privatização.

É para isso que temos o BNDES, um banco público, que administra e empresta dinheiro público, dinheiro que pertence a cada brasileiro? Por que não vemos, no BNDES, mais transparência em suas decisões? Por que um banco que traz desenvolvimento social em seu nome segue a privilegiar os donos do poder econômico? Se isso não mudar, melhor é lutarmos pela privatização do BNDES, deixando as políticas de fomento ao desenvolvimento econômico e social a cargo dos ministérios.