O pronunciamento da presidenta Dilma Rousseff na 66ª assembléia geral das Nações Unidas adquiriu sentido histórico. Não só pelo importantíssimo fato de, pela primeira vez, uma mulher abrir o encontro do mais alto foro internacional, mas, especialmente, pelo seu conteúdo denso, afirmativo e corajoso.
O Brasil deixou a periferia do mundo e ocupou o lugar que lhe estava destinado há muitos anos e, por incapacidade de alguns governos, não havia sido ocupado. Esse movimento necessário, embora já tardio, foi iniciado pela política externa visionária do presidente Lula, ao colocar nossa competente diplomacia, através dos melhores esforços do Itamaraty, a serviço do estreitamento de relações mais fluídas e pragmáticas com os demais países, onde o respeito à autodeterminação dos povos e a declarada disposição de permanentes parcerias deram o tom de oito anos de avanços consideráveis em nossa política exterior.
Agora a presidenta Dilma faz história, ao reafirmar nossa política externa independente e democrática, em pronunciamento onde a clareza da exposição não impediu uma abordagem profunda dos temas mais caros à humanidade. Se alguém tinha dúvidas acerca da firmeza com que o Brasil se colocou no cenário externo, certamente agora não alimenta qualquer questionamento. Nosso país assumiu o papel que lhe cabe como uma das maiores economias do planeta, como potência agroindustrial do século XXI, como reserva natural de um mundo novo e sustentável. O Brasil não pede mais licença: ele é um dos líderes na nova correlação de forças no cenário internacional. E a presidenta Dilma deixou isso claro ao falar com firmeza, sem qualquer arrogância, mas longe do servilismo que caracterizou os anos do tucanato, quando nossa política externa era uma sucursal dos desígnios do Departamento de Estado ou dos interesses do Departamento Comercial norte-americanos. Longe vai a cena triste de um chanceler do governo de Fernando Henrique Cardoso retirando os sapatos para ser revistado minuciosamente, tal qual um suspeito de terrorismo, no aeroporto de Washington. Desde o governo de Lula somos aplaudidos de pé.
No momento delicado em que o mundo enfrenta uma quadra das mais duras, com o desmoronamento de sistemas econômicos como o da Grécia, e países como Itália, Espanha, Portugal e mesmo os Estados Unidos, se defrontam com questionamentos políticos, sociais e de toda ordem, Dilma fala com autoridade moral e com objetividade chama a atenção dos poderosos protagonistas da crise vivida: “Não é por falta de recursos financeiros que os líderes dos países desenvolvidos ainda não encontraram uma solução para a crise. É, permitam-me dizer, por falta de recursos políticos e algumas vezes, de clareza de idéias”, afirmou Dilma sob aplausos.
Outra afirmação, de grande impacto e veracidade, revela iuma das causas, senão a principal, da grave crise enfrentada na zona do Euro e nos Estados Unidos: “Uma parte do mundo não encontrou ainda o equilíbrio entre ajustes fiscais apropriados e estímulos fiscais corretos e precisos para a demanda e o crescimento. Ficam presos na armadilha que não separa interesses partidários daqueles interesses legítimos da sociedade”.
Dilma, líder de um Brasil sem desemprego, foi destemida e verdadeira, ao colocar o dedo na ferida e lembrar a chaga social do desemprego nos países ricos: “O desafio colocado pela crise é substituir teorias defasadas, de um mundo velho, por novas formulações para um mundo novo. Enquanto muitos governos se encolhem, a face mais amarga da crise – a do desemprego – se amplia. Já temos 205 milhões de desempregados no mundo. 44 milhões na Europa. 14 milhões nos Estados Unidos. É vital combater essa praga e impedir que se alastre para outras regiões do Planeta”.
A estréia da Chefe da Nação, com altivez e sem subordinação alguma à interesses externos, não poderia ter sido melhor. Dilma continua a política externa de Lula, dando a entonação de sua forte personalidade de mulher guerreira e administradora competente, falando ao mundo o que o Brasil quer falar. Dilma levou ao mais alto foro internacional a posição de um país que recuperou décadas de atraso social, superou a década infame do governo que antecedeu a administração petista, incorporou 40 milhões de compatriotas à classe média, tirando-os da pobreza e dando-lhes cidadania e angariou respeitabilidade entre as demais Nações pela competência com que cresce, se moderniza, solidifica sua democracia e melhora as condições de vida de todo o seu povo.
Dilma não decepcionou aos que esperavam a confirmação de nossa política externa independente, apoiando a representação da Palestina na ONU, bem como reafirmando nossa total independência na condução da política exterior.
Numa ironia do destino, coube a uma mulher a tarefa de fazer o mais corajoso e verdadeiro das dezenas de discursos que o mundo ouviu na 66ª assembléia geral da ONU. Não deixou tema importante sem ser tratado com a devida seriedade e apontando caminhos e soluções. Foi um discurso diferente dos demais: analisou o quadro internacional, descreveu as mazelas da atualidade, mas mostrou que há saídas e precisam ser partilhadas por todos os povos e seus governos.
E a história, por seus caprichos e mistérios, nas voltas que o mundo dá, permitiu que quatro décadas depois de ser barbaramente torturada nos cárceres da ditadura militar brasileira, a mesma Dilma, sem medo e sem ódio, isenta de qualquer rancor, porém sem a complascência do esquecimento, finalizasse falando para o mundo e para a história: “Como mulher que sofreu tortura no cárcere, sei como são importantes os valores da democracia, da justiça, dos direitos humanos e da liberdade”.
(*) Delúbio Soares é professor
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