Denunciado por assédio sexual e estupros de centenas de pacientes espirituais, João de Deus segue a trilha perversa de Roger Abdelmassih e vê sua reputação aniquilada do dia para a noite
Vicente Vilardaga, IstoÉ
O médium João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus, vinha exercendo tranquilamente seus supostos poderes paranormais em Abadiânia, Goiás, há 44 anos. Graças à sua fama, o lugar virou um dos principais pólos de peregrinação espiritual do mundo. Chamada de centro de medicina da alma, a Casa de Dom Inácio de Loyola atraia pelo menos dez mil pessoas para a cidade todos os meses, boa parte estrangeiros, e parecia um lugar abençoado, repleto de entidades mágicas onde as pessoas procuravam e encontravam algum tipo de cura e paz de espírito. Pura ilusão. Mostrou-se agora que o lar de João de Deus era também um templo da perdição. Uma sala privativa localizada na saída do espaço de atendimento coletivo funcionava como o covil de um assediador em série.
As mulheres iam buscar consolo para a alma em consultas individuais, normalmente convocadas pelo próprio médium, e se deparavam com ele seminu, fazendo atos obscenos e prometendo a cura para as que tocassem em seu pênis.
João de Deus, de 76 anos, é mais um típico caso de um homem poderoso e protegido que age descontroladamente com a crença na impunidade, sem perceber que o mundo mudou. As primeiras denúncias que vieram a público indicam que ele tem cometido abusos persistentes desde os anos 1990 pelo menos, contra brasileiras e estrangeiras. Seu caso se assemelha muito ao do ex-médico Roger Abdelmassih, que atacou dezenas de mulheres por duas décadas durante as consultas em sua clínica de reprodução assistida, em São Paulo. Como Abdelmassih, João de Deus também se valia de sua condição de superioridade sobre as mulheres para tentar abusar delas. Ambos atacavam suas vítimas em momentos de fragilidade. Se na clínica do ex-médico elas tinham o sonho de um filho, na Casa Dom Inácio elas buscavam uma cura milagrosa. Mas nos dois casos acabaram encontrando o sofrimento e o trauma. Abdelmassih acabou condenado em 2010 a 181 anos de cadeia por 56 casos de violência sexual contra 39 mulheres e hoje cumpre pena em casa. A Promotoria de Justiça de Goiás solicitou, quarta-feira 12, a prisão preventiva de João de Deus.
“Estamos recebendo denúncias contra o médium há três meses e os dois casos são muito semelhantes”, diz a psicóloga Maria do Carmo Santos, presidente da ONG Vítimas Unidas, criada por pacientes abusadas pelo ex-médico e que está dando apoio para as vítimas de João de Deus. “São pessoas que não se conhecem e contam a mesma história. É bem parecido com o que aconteceu no caso de Abdelmassih.”O ritmo inicial de crescimento do número de denúncias contra João de Deus é assombroso e maior que o de Abdelmassih. As primeiras acusações vieram à tona no programa Conversa com Bial, na Rede Globo, na sexta-feira 7. A primeira vítima a se identificar foi a coreógrafa holandesa Zahira Leeneke Maus, que acusou o médium de estupro. Nos dias seguintes, as acusações se multiplicaram. Outras mulheres como a empresária paulistana Aline Saleh, 29 anos, e a estudante paranaense Sarah Varnier, 24 anos, também mostraram o rosto. O Ministério Público e a Polícia Civil de Goiás criaram duas forças-tarefas para acelerar o fluxo de denúncias e os trabalhos de investigação. No Ministério Público de São Paulo foi criado um grupo especial que vem sendo procurado por dezenas de mulheres.
Até a última quarta-feira, 258 mulheres haviam entrado em contato por email, telefone ou pessoalmente com a promotoria de Goiás para acusar João de Deus. Em São Paulo, outras 12 vítimas já foram ouvidas, 23 estão agendadas para fazer seus relatos nos próximos dias e 38 enviaram emails com pedidos para formalizarem suas denúncias. “Os ataques envolvem desde mulheres muito jovens, pré-adolescentes, até mulheres adultas, todas abusadas num momento de extrema fragilidade”, afirma a promotora Valéria Scarance, coordenadora do núcleo de gênero do Ministério Público de São Paulo, que participa da força-tarefa- “Elas noticiam, de uma forma geral, a prática do abuso sexual e no momento inicial do abuso acreditavam que se tratava de um procedimento espiritual. Sabemos que muitas mulheres que se opuseram a João de Deus sofreram ameaças.”
Uma das vítimas que denunciou o médium na última terça-feira foi a dona de casa Maria (nome fictício), de 41 anos, moradora de Valparaíso, em Goiás, que diz ter sido atacada por João de Deus em 1999, aos 19 anos. Naquele tempo, ela estava deprimida e buscava tratamento na Casa Dom Inácio. Foi selecionada para um encontro individual com o médium, na mesma sala onde todas as mulheres denunciam a prática de abusos. “Ele me apertou contra a parede e começou a me passar a mão, enquanto tremia e gemia ofegante no meu ouvido”, contou Maria à ISTOÉ. “Falou que eu ficaria boa se seguisse suas orientações e colocou a minha mão dentro da calça dele. Depois empurrou meu ombro para eu me ajoelhar e tentou me forçar a fazer sexo oral”. Até hoje, ela vive os traumas do abuso. “Nunca falei nada porque me sentia culpada e não imaginava que houvesse outras vítimas. Assim que soube disso, resolvi imediatamente denunciá-lo”.
Folha corrida
“Místicos e religiosos utilizam crenças milenares para cometer abusos”, afirma a ativista Sabrina Bittencourt, que coordena o movimento Combate ao Abuso no Meio Espiritual (Coame) e recebeu as primeiras denúncias contra João de Deus. “Eles seduzem as mulheres dizendo que elas são privilegiadas por serem tocadas por um homem santo.” Sabrina também contribuiu para as denúncias contra o guru Sri Prem Baba, acusado de assédio em agosto passado por várias discípulas de sua comunidade. João de Deus tem uma folha corrida considerável. Além de denúncias de charlatanismo e prática ilegal da medicina, ele já foi acusado de seduzir uma menina menor de idade, em 2012, mas acabou absolvido por falta de provas. Também já foi acusado de atentado violento ao pudor, contrabando de minério e assassinato. O médium tem onze filhos. Há uma ação movida por uma de suas filhas, Dalva Teixeira, por abusos. Dalva diz que foi molestada pelo pai dos 9 aos 14 anos.
Na última quarta-feira, 12, João de Deus esteve na casa Dom Inácio, mas passou pouco tempo por ali. Abatido, mais magro, fez uma rápida oração, alegou uma crise de pressão alta e saiu rapidamente, cercado por um cordão humano de seguidores devotados. Numa curta declaração, reafirmou sua inocência. Deixou também um recado: “Meus queridos irmãos e minhas queridas irmãs, agradeço a Deus por estar aqui. Ainda sou irmão de Deus, mas quero cumprir a lei brasileira porque estou na mão da lei brasileira. João de Deus ainda está vivo”. Seu advogado, Alberto Toron, disse que o médium nega enfaticamente as acusações contra ele, e que está à disposição das autoridades para esclarecimentos. A apresentadora americana Oprah Winfrey, que promoveu o médium internacionalmente, retirou do ar vídeos com João Deus no YouTube depois das denúncias. Oprah disse que tem empatia pelas mulheres e “espera que a Justiça seja feita”.
Em geral, abusadores como João Faria e Abdelmassih acreditam que são seres iluminados, acima do bem e do mal, e se enxergam como semideuses. São homens que se sentem numa condição superior e fazem o que querem, sem temer as consequências. Repetem seus atos condenáveis de uma maneira padronizada e carecem de capacidade de empatia e misericórdia. Para o psicoterapeuta junguiano Marcos Callia tanto o caso de João de Deus como o de Abdelmassih expõem o lado obscuro da natureza humana, o chamado “efeito sombra”. “Eles são tratados como seres iluminados e de repente revelam uma sombra tão potente como seus atributos divinos”, diz Callia. “Isso cria uma efeito devastador sobre a credibilidade desses homens, que se transformam em farsantes.”
Os primeiros sinais de que João de Deus caiu em desgraça são evidentes. A Paris Filmes suspendeu a distribuição do filme “João de Deus – o silêncio é uma prece” e a editora Companhia das Letras interrompeu as vendas da biografia “João de Deus – um médium no coração do Brasil”. A própria existência da Casa Dom Inácio está ameaçada. O Ministério Público de Goiás estuda a interdição do centro. Resta saber como ficará Abadiânia, um município de 19 mil habitantes que é completamente dependente do turismo místico. Tem 1,5 mil quartos de pousadas para hospedagem que registram uma ocupação média de 80%, principalmente entre quarta e sexta-feira, dias de atendimentos espirituais. Sem o carisma do médium, essa economia tende a declinar, na mesma intensidade que a crença de seus adeptos.
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https://istoe.com.br/deuses-nao-abusadores-de-mulheres/
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