Armas de fogo também se enquadram na importância perto de zero
Mary Zaidan
Pelo Twitter, Jair Bolsonaro anunciou ontem a intenção de facilitar a posse de armas de fogo. Por decreto. A decisão nesse sentido era esperada, até por atender às promessas de campanha. O que chama atenção é o padrão do futuro presidente de despejar combustível em temas periféricos, incendiando debates de importância duvidosa, mas capazes de produzir fumaça suficiente para esconder os ainda não revelados planos de enfrentamento dos imbróglios em que o país está metido.
A dois dias da posse, pouco ou nada se sabe sobre as propostas para redução do déficit fiscal, reformas da Previdência e tributária, ou para incrementar a educação infantil e de jovens. Mas já estão na mesa propostas de por fim ao “poder” do Ibama, como se o órgão de proteção ambiental fosse responsável pelo atraso econômico de um país que continua desmatando ilegalmente. Ou para mudar a Lei Rouanet, que usa 0,02% do PIB para financiar a cultura e gerar mais de um milhão de empregos diretos.
Não se tem ideia também da estratégia do novo governo para atacar o desemprego (se é que existe uma), muito menos como fará para combater endemias, ampliar atendimento médico, estimular a maturidade do SUS. Mas a intenção de mudar a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém e de criar regras duras para imigração já são conhecidas.
Bolsonaro anunciou que o Brasil sairá no Pacto Global sobre Migração da ONU, como se isso tivesse grande relevância.
Embora a fuga de venezuelanos para Roraima seja um problema real, imigração não está listada nem entre os 100 problemas nacionais. Ao contrário: o país recebe pouquíssimos imigrantes. Segundo a ONU, o Brasil abriga 1,3 milhão de imigrantes, 0,63% de seus 207 milhões de habitantes. Nos Estados Unidos, imigrantes são 12,8% da população. Na França, exemplo utilizado pelo ex-capitão para justificar leis firmes de controle de fronteiras, 10%.
Armas de fogo também se enquadram na importância perto de zero.
Embora muito se fale da lei de desarmamento em vigor, ela não impede a posse e o porte. Apenas estabelece limites, como idade mínima, provas de idoneidade e capacidade psicológica. Itens impossíveis de serem modificados por decreto como o eleito diz pretender. E corre longe de auxiliar no combate ao crime, não raro agindo no sentido inverso.
Dados compilados até outubro deste ano pelo Sistema Nacional de Armas (Sinarm) da Polícia Federal apontam 646.127 armas registradas nas mãos de civis, com crescimento consistente de autorizações, algo em torno de 90 por dia. Outras 10 milhões com policiais e Forças Armadas. As ilegais somariam mais de 7,5 milhões, levantamento precário realizado em 2010 e que nunca mais foi atualizado. Sabe-se ainda que mais de 30% dos homicídios são cometidos com armas registradas, roubadas ou não de “gente de bem”.
Os números por si só escancaram o desvio de foco: armar civis não vai reduzir e muito menos combater o tráfico de armas que alimenta a violência.
Diga-se em favor de Bolsonaro que ele nunca pregou a posse de armas de fogo como política antiviolência. Mas causa estranhamento ver que a flexibilização das regras tenha sido eleita uma das prioridades por seu ministro da Justiça, Sérgio Moro, responsável pela área de segurança pública. Pior: nada além do decreto pró-armas foi anunciado.
Na terça-feira, Jair Bolsonaro se torna o 38º presidente do Brasil. Tomara que ele assuma de peito aberto, encare os problemas de frente, espante a tentação de enfumaçar o ambiente com fogo de palha. E se espelhe no pito que deu em seus filhos: “A campanha acabou, está na hora de governar”.
Feliz 2019.
Mary Zaidan é jornalista. E-mail: [email protected] Twitter: @maryzaidan
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https://veja.abril.com.br/blog/noblat/cortinas-de-fumaca/
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