O jornal americano “The New York Times”, um dos mais prestigiados do mundo, traz como destaque em sua capa de segunda-feira (4) uma reportagem que busca explicar os elos entre a corrupção e a atual crise política brasileira. As informações são da Folha de S. Paulo.
Grande parte da capa do diário é ocupada por chamadas para a matéria sobre o Brasil. A presidente Dilma Rousseff é a maior imagem da primeira página do jornal, que também traz fotos do ex-presidente Lula, do senador Delcídio do Amaral, do juiz Sergio Moro e de um protesto contra o governo.
O destaque para a reportagem sobre a crise brasileira é maior do que o dado, por exemplo, a matéria sobre a indicação de um juiz à Suprema Corte americana ou a uma reportagem sobre a campanha do presidenciável Bernie Sanders nas primárias do Partido Democrata.
A REPORTAGEM
A reportagem do jornal americano entrevista o senador Delcídio do Amaral (Sem Partido-MS), preso pela Polícia Federal por tentar interferir nas investigações da Operação Lava Jato. Ao “NYT” Delcídio afirma que se sentiu como “batendo em um muro após uma perseguição em alta velocidade”.
O jornal aponta o escândalo de corrupção na Petrobras como um dos mais extensos entre os países em desenvolvimento, afirmando ainda que ele, ao lado da crise econômica que afeta o país, “devastou as ambições globais” do Brasil.
Entre os políticos citados na reportagem como alvos de acusações de Delcídio na delação premiada, estão o ex-presidente Lula, além do vice-presidente Michel Temer e do líder da oposição Aécio Neves (PSDB-MG), além da presidente Dilma Rousseff. Segundo Delcídio, ela o teria instruído a sabotar uma investigação sobre a Petrobras, convencendo juízes influentes a liberta empreiteiros magnatas acusados de corrupção.
O “NYT” ainda relata em detalhes o encontro entre Delcídio e o ator Bernardo Cerveró, filho do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró. O encontro, onde Delcídio articula uma fuga de Nestor do país, foi gravado por Bernardo, e acabou resultando na prisão do senador. Ao jornal americano, Delcídio afirma que “não é um homem corrupto”.
O diário também relata “pânico no Partido dos Trabalhadores”, citando gravações de membros da legenda, como o ministro da Educação Aloizio Mercadante e o ministro-chefe do gabinete pessoal de Dilma, Jaques Wagner.
Casos envolvendo o ex-presidente Lula, como as reformas pagas por empreiteiras em um sítio em Atibaia e a compra de um tríplex no Guarujá também são citados na matéria.
GAME OF THRONES BRASILEIRO
O jornal faz referência à série de fantasia da “HBO” para se referir ao atual cenário político do país. As gravações que mostram o diálogo entre Dilma e Lula são citadas, assim como críticas ao juiz Sergio Moro, acusado por alguns de comandar uma “caça às bruxas partidária”. O vice-presidente Michel Temer é comparado a um mordomo de filmes de terror.
Ao final da matéria, Delcídio revela ter acompanhado pessoalmente os protestos do dia 13 de março, contra o governo Dilma Rousseff. Segundo a reportagem, o senador teria ido a uma das manifestações em sua moto Harley Davidson, mas não teria removido o capacete, com medo da reação que provocaria nos manifestantes.
Leia abaixo a íntegra da reportagem do jornalista Simon Romer, do “The New York Times”, sobre a crise política brasileira.
O senador de cabelos grisalhos, da fronteira oeste brasileira, estava de pijama quando agentes da polícia federal bateram à porta de sua suíte no Royal Tulip, hotel futurista que serve de bastião a boa parte da elite política brasileira. Eram 6h.
Os agentes estavam armados de uma gravação secreta que lembrava a trama de um thriller de Hollywood. O senador, Delcídio do Amaral, havia sido apanhado detalhando um plano elaborado para que um executivo petroleiro apanhado em um escândalo de corrupção cada vez mais amplo escapasse do país em um avião privado.
Amaral, 61, até sua detenção em Brasília naquela manhã do final de novembro era o mais poderoso líder do governo no Senado. Ele rapidamente buscou um acordo de delação premiada, mas os procuradores o deixaram apodrecendo na prisão por semanas, aceitando um acordo apenas depois que o senador caído em desgraça ofereceu uma sucessão de revelações chocantes que traíram seus antigos camaradas e carregaram o governo da presidente Dilma Rousseff para ainda mais perto do colapso.
“Senti que tinha batido em um muro depois de uma perseguição em alta velocidade”, disse Amaral em fevereiro. “Eu errei, e por isso compreendi que precisava uma chance de corrigir os meus erros. É preciso ser pragmático”.
Buscando voltar Amaral definitivamente contra Rousseff e o Partido dos Trabalhadores (PT) do qual os dois são membros, os investigadores brincaram com a possibilidade de dar à operação o nome “Catilina”, em referência ao patrício renegado cujas conspirações abalaram o senado da República Romana no século 1 AC.
Os relatos de Amaral sobre subornos colossais, negócios de bastidores e manobras desesperadas de acobertamento – montados com base em entrevistas, vazamentos de escutas telefônicas e documentos judiciais – oferecem um raro vislumbre de como um partido de esquerda que subiu ao poder prometendo eliminar a corrupção de uma elite política privilegiada terminou por abraçar as políticas de seus predecessores. O depoimento dele acelerou a crise política brasileira, na qual líderes temerosos manobram para tomar o poder, gravando secretamente as conversas uns dos outros e se preparando para o dia em que eles também poderão se ver na posição de alvo de uma operação policial realizada na madrugada.
Mesmo o juiz que inicialmente era elogiado por perseguir destemidamente os poderosos agora foi acusado de violar a lei ao divulgar publicamente provas relacionadas à investigação.
O tumulto começou dois anos atrás, quando procuradores descobriram um esquema dentro da estatal de petróleo Petrobras: empreiteiras teriam pago quase US$ 3 bilhões em propinas a executivos, que por sua vez canalizaram dinheiro para campanhas dos partidos que integravam a coalizão governista brasileira. Quase 40 políticos, magnatas dos negócios e cambistas do mercado negro foram aprisionados desde então, e a expectativa é de que a lista cresça, com os procuradores investigando suspeitos que incluem os presidentes das duas casas do Congresso.
Os estudiosos afirmam que o escândalo de corrupção está entre os mais graves nos países em desenvolvimento, comparando-o a um terremoto que atingiu a elite privilegiada do país. Ele veio na companhia de desafios econômicos esmagadores, quando a queda no preço das commodities fez com que o desemprego disparasse para os 9,5% ante 6,8% um ano antes. Só em 2015, o Brasil perdeu 1,5 milhão de postos de trabalho, uma virada ante os 7,6% de crescimento registrados pelo país em 2010.
A dupla ameaça de um colapso político e econômico devastou as ambições mundiais da maior nação latino-americana no pior momento possível. O Brasil está ao mesmo tempo enfrentando uma epidemia de defeitos congênitos ligados ao vírus zika, transmitido por mosquitos, e se preparando para sediar a olimpíada deste ano.
Que o coração do escândalo seja a Petrobras, fundada em 1953 e cercada por uma mítica aura nacionalista, só serviu para multiplicar os efeitos. A empresa é a peça central de uma teia de empresas de energia e bancos estatais que servem de base à economia brasileira, projetando poder por todo o país e no exterior. Também financiou uma série de programas de arte, entre os quais uma orquestra sinfônica, grupos de dança moderna e exposições de pintura, atividades que a companhia cortou profundamente, da mesma forma que cortou seu quadro de funcionários.
Os brasileiros muitas vezes brincam sobre as raízes profundas da corrupção no país, afirmando que ela remonta à chegada do navegador português Pedro Álvares Cabral, em 1500, trazendo presentes como estratégia para reivindicar terras habitadas por povos indígenas. Há um quarto de século, o então presidente Fernando Collor de Mello foi forçado a renunciar devido a um escândalo de tráfico de influência, lapso que parece quase amador em comparação ao que vem acontecendo agora.
Foi quando Amaral começou a demolir o governo que ele antes apoiava lealmente que muitos brasileiros começaram a perceber até que ponto as trapaças se haviam generalizado.
Ele testemunhou que Luiz Inácio Lula da Silva, antigo presidente e fundador do PT, havia orquestrado a compra do silêncio de um empresário condenado por operar um esquema de compra de votos.
Amaral também afirmou que o vice-presidente Michel Temer, que estava manobrando pelo impeachment de Rousseff, esteve envolvido em uma operação ilegal de compra de álcool. Outro alvo de suas denúncias foi Aécio Neves, o líder oposicionista derrotado por pouco na eleição de 2014, revelando que a família dele tinha uma conta secreta em um banco do Liechtenstein. (Neves disse que sua mãe havia aberto a conta para pagar pela educação dos netos.)
Antes das revelações de Amaral, Rousseff havia em geral conseguido se manter acima das disputas, em parte ao se vangloriar de reforçar a independência do Judiciário ao permitir que os procuradores agissem contra acusados de suborno dentro de seu partido. Mas o senador afirmou que a presidente o havia instruído a sabotar a investigação sobre a Petrobras ao persuadir um importante juiz a solicitar a libertação de magnatas da construção acusados de corrupção.
Tanto Rousseff quanto Lula afirmam que Amaral está mentindo. Em termos mais amplos, Rousseff declarou em entrevista recente que não sabia da corrupção na Petrobras, apesar de ter servido como presidente do conselho da empresa de 2003 até 2010, quando foi eleita presidente, um período em que a corrupção avançou muito na companhia. Ela também insiste em que suas campanhas eleitorais não receberam financiamentos ilegais.
Amaral, atacado por líderes de todo o espectro político como fabulista, sorri durante suas entrevistas como o gato de “Alice no País das Maravilhas”. Orador talentoso, ele entremeia seus relatos com ditados do Pantanal, a vasta região alagadiça em que sua família opera fazendas de pecuária. Buscando maneiras de explicar o vórtice político, ele chegou em dado momento a recitar um verso de uma velha canção brasileira.
“Estou só fazendo minha parte para ajudar a república”, disse o senador.
ATOR ILUDE SENADOR
Em retrospecto, disse Amaral, ele reconhece que jamais deveria ter confiado em Bernardo Cerveró, um jovem ator tentando fazer carreira no Rio de Janeiro.
O senador, que foi diretor de gás e energia na Petrobras em 2000 e 2001, disse ter aceitado uma reunião com Cerveró, 34, em novembro por conta de sua amizade com o pai do ator, Nestor, sentenciado a prisão por acusações de corrupção relacionadas ao seu trabalho na Petrobras. O jovem Cerveró, ator de um grupo experimental de teatro, gravou clandestinamente em seu celular a conversa dele com o senador, no Royal Tulip, hotel em formato de ferradura no qual o senador vive em Brasília, bem perto do palácio presidencial.
Amaral garantiu a Cerveró que persuadiria os juízes da mais alta corte brasileira a libertar seu velho amigo, concedendo-lhe prisão domiciliar. Depois explicou como organizaria arranjos para pagar US$ 1 milhão à família de Cerveró, mais uma mesada de cerca de US$ 13 mil, o que, suspeitam os procuradores, tinha por objetivo levar a família a não denunciar as transações do senador com a Petrobras.
E Amaral explicou como ajudaria Nestor Cerveró a fugir para a Espanha, incluindo detalhes como a desativação de seu sistema eletrônico de vigilância. O ator sugeriu uma fuga de barco, mas o senador afirmou que o preferível seria uma fuga por avião, acrescentando que “a melhor maneira de ele sair é pelo Paraguai”.
Isso bastou para acusações de obstrução da Justiça contra Amaral e André Esteves, o banqueiro bilionário que, segundo o senador, financiaria a jornada.
Antes de sua detenção, Amaral era conhecido em Brasília como astuto operador de bastidores, aproveitando sua longa experiência no negócio petroleiro.
Ele estudou em um colégio jesuíta e depois se formou em engenharia, e trabalhou na Holanda, para a gigante do petróleo Royal Dutch Shell, no começo dos anos 90. De volta ao Brasil, ele galgou a burocracia do setor de energia, controlado pelo Estado.
Foi quando estava trabalhando no Ministério da Energia, em 1993, que ele conheceu Rousseff, então uma obscura funcionária encarregada da política de energia do governo do Rio Grande do Sul.
“Conheci Dilma em uma briga”, ele disse, recordando seus primeiros encontros com Rousseff, que estava buscando renegociar a dívida de uma empresa de eletricidade pública junto às autoridades federais. “Ela foi extremamente agressiva. Sempre foi”.
Amaral entrou para o PT em 2001, e conquistou cadeira no Senado no ano seguinte, quando Lula disputou com sucesso a presidência.
À medida que o Brasil enriquecia com a descoberta de campos de petróleo a grande profundidade subaquática, Amaral também se beneficiava.
Alguns colegas de Amaral no PT ainda se arrepiam ao recordar a festa de 15 anos que o senador e a mulher organizaram em 2011 para sua filha. Comparando o evento, realizado na cidade de Campo Grande, região oeste, aos bailes organizados pela nobreza europeias, colunistas sociais relataram encantados todos os toques de luxo: 240 garrafas de champanha Veuve Clicquot, e um vestido feito com cristais Givenchy para a aniversariante.
PÂNICO NO PT
Em dezembro, enquanto o senador estava preso, seu velho amigo na Petrobras, Nestor Cerveró, revelou a investigadores que Amaral havia embolsado uma propina de US$ 10 milhões em 2001, na compra de turbinas companhia francesa de energia Alstom. Amaral negou essa e todas as demais acusações de que enriqueceu ilegalmente, declarando que “não sou um homem corrupto”.
Amaral foi o primeiro senador em exercício de seu mandato a ser preso desde o restabelecimento da democracia no Brasil, nos anos 80, e sua detenção causou pânico e indignação no PT, que Lula e outros líderes sindicais fundaram nos anos 80 para resistir à ditadura militar brasileira.
A disposição do senador de atraiçoar seus colegas tornou uma coisa inevitável: que mais gravações clandestinas viessem a enriquecer a saga do impasse político brasileiro.
Pouco depois da detenção dele no Royal Tulip, o ministro da Educação Aloizio Mercadante, um dos principais assessores de Rousseff, contatou Eduardo Marzagão, um confidente de Amaral, oferecendo ajuda para cobrir as despesas legais da família.
“Olha, Marzagão, é só me dizer como posso ajudar”, disse Mercadante. “Estou aqui para isso, para ajudar”.
Ele não estava ciente, claro, de que Marzagão estava gravando o telefonema. Os procuradores agora têm Mercadante na mira.
O JUIZ E LULA
Há mais de um ano, Sérgio Moro, um juiz federal ativista no sul do Brasil, vem comandando o inquérito sobre a Petrobras. Ele aproveitou novas leis de combate à corrupção que permitem que acusados reduzam suas sentenças de prisão em troca de informações, ajudando os procuradores a deter poderoso após poderoso.
O labiríntico inquérito terminou por levar a Lula. Estava claro que o ex-presidente havia desfrutado de conexões com os magnatas que comandam as empreiteiras e lhe pagaram dezenas de milhões de dólares por palestras.
Os procuradores em seguida descobriram que empreiteiras haviam pago por renovar um sítio perto de São Paulo e um apartamento à beira mar na cidade do Guarujá, duas propriedades que eles afirmam estar sob o controle do ex-presidente. (Lula nega ser o proprietário de qualquer das duas.)
No sítio, agentes da polícia encontraram uma caneta com o escudo do Corinthians, o time de futebol pelo qual Lula torce em São Paulo, com a inscrição “ao ilustre presidente Lula”. A adega tem garrafas de vinho dedicadas a ele. Atracados em um cais no lago, há pedalinhos que portam o nome de seus netos, Pedro e Arthur.
Quando os investigadores apertaram o cerco, Lula foi se alarmando cada vez mais, de acordo com escutas de telefonemas obtidas como parte do inquérito. Ele criticou o Supremo Tribunal Federal, usou expressões chulas para descrever os presidentes das duas casas do Congresso e apelou aos seus colegas do PT para que pressionassem os procuradores.
“Por que não conseguimos intimidá-los?”, o ex-presidente perguntou a um deputado. Instruindo-o sobre como irritar um investigador, Lula disse: “Ele precisa ir dormir sabendo que no dia seguinte terá 10 congressistas o incomodando em casa, em seu gabinete, e que ele terá de enfrentar um processo no Supremo Tribunal Federal”.
Com o aumento da pressão, a denúncia de 255 páginas feita por Amaral como parte de seu acordo de colaboração vazou para a mídia no começo de marco, causando negação furiosa e manobras desesperadas. Rousseff apontou Lula, seu predecessor e patrono, como chefe de sua Casa Civil, o que lhe conferiria amplas proteções legais.
Por algumas horas, em 16 de março, o plano parecia ter funcionando.
O GAME OF THRONES BRASILEIRO
No mesmo dia, Moro divulgou gravações dos telefonemas de Lula a Rousseff e outros políticos. Os telefonemas mostravam o ex-presidente tentando salvar sua narrativa heroica ao lado de uma líder que tentava evitar um processo de impeachment comparado por ela a um golpe em câmera lenta.
Os juízes do Supremo Tribunal Federal suspenderam a indicação de Lula. Mas Moro, o juiz de fala mansa que comanda o inquérito, também encara recriminações, por revelar conversas da líder da nação sem autorização do mais alto tribunal brasileiro, o que conduziu a acusações de que seu inquérito, antes admirado, se havia tornado uma caça às bruxas partidária.
Com o progresso do caso, mais aliados estão abandonando Rousseff, com o objetivo de conquistar poder para eles mesmos. Eles dizem que ela deve ser alvo de impeachment por violar as leis fiscais e usar dinheiro de bancos estatais para cobrir rombos no orçamento.
Liderados por Temer, cujo comportamento enigmático leva rivais a compará-lo a um mordomo em um filme de terror, os centristas que formavam a âncora da coalizão de Rousseff a abandonaram na semana passado.
No Congresso, legisladores acusados de imensa corrupção pessoal estão acelerando o processo de impeachment da presidente, que não se viu maculada por imputações de enriquecimento pessoal ilícito.
Amaral, cujo mandato o Comitê de Ética do Senado está tentando cassar, não está assistindo ao espetáculo das arquibancadas. Em 13 de março, ele saiu em sua moto Harley-Davidson e se uniu a centenas de milhares de manifestantes contra o governo em São Paulo. Mas não tirou o capacete, por medo de como a multidão poderia reagir.
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