Por muito tempo muito se falou e muito se divagou acerca do chamado “legado da Copa”. Para quem já presenciou, é evidente que os aeroportos estão muito melhores, de forma significativa. Que a segurança pública, pelo menos no que diz respeito aos locais da Copa, idem. A mobilidade e transporte para chegar aos jogos desperta inveja. Black Blocks contidos. Estrangeiros não compreendem o porquê de tanto mau humor e midiatismo negativo com um país que aparenta ser tão hospitaleiro, festivo, easy going e organizado. De fato, os relatos externos em relação aos brasileiros não deixam dúvidas: o Brasil não era o que pintavam.
De todos os legados da Copa: os que existiram, os que disseram que iria existir e os que não sabemos se existirá ou não, o mais óbvio e mais salutar parece ser aquele que estava mais próximo de nós e, por preconceito, racismo, tentativa obtusa de sermos mais internacionais do que efetivamente somos, má fé cínica ou ignorância cornea não notávamos: temos vizinhos sul-americanos muito parecidos com nós. E a Copa do Mundo é uma maneira fantástica de enfim nos olharmos no espelho e percebermos que é muito mais gostoso e rico poder enfim conhecer nosso irmão que mora ao lado do que eternamente viver como macacos transoceânicos.
A nossa classe média há muito desprezava os vizinhos sul-americanos. Criados num ambiente já propício para viagens internacionais, num cenário de estabilidade inflacionária e de câmbio pós Plano Real a grande jogada para nossos jovens era Miami. Nova York. Paris. Visitar Buenos Aires, Assunção, Montevidéu, Santiago estava for a de questão. Ora, isso era coisa de pobre, gentalha.. Aliar-se a esse tipo de gente não serviria para nos tornarmos mais importantes. Diferentes. Sermos reconhecidos como parte de um importante Primeiro Mundo mesmo sem assim o sermos. Nesse cenário esquizofrênico e de visível distúrbio de personalidade, o que restava era considerar-se exclusivamente como superior, a partir do momento em que existia a negação do outro. Do alheio. A negação do outro seria e é uma afirmação de nós mesmos. Por mais medíocre que isso possa parecer.
Num cenário pré-Copa, o argentino é tratado como o inimigo amaldiçoado pelas transmissões globais. Como o inimigo a ser eternamente batido, espinafrado, devassado, tripudiado. O racismo contra argentinos chegou a níveis preocupantes no Brasil, que transcendiam e muito as preferências futebolísticas A era pós-Maradona traz um recalque brasileiro extra-esportivo que não é recíproco. O argentino ama o Brasil. Suas belezas naturais, seu povo. Tira o maior sarro de como tudo no Brasil é “o mais grandi do mundo” (favor acentuar o sotaque). Sabe que somos muito maiores em tudo, até no futebol. O paraguaio, como o “falsificado”, o país sem divisas que vive de copiar produtos alheios para conseguir sobreviver. Uruguaios? Um anteparo para cruzeiros. Colombianos e bolivianos? Tráfico e droga. Chilenos? Estação de esqui, vá lá.. Equatorianos, peruanos, guianenses? Sumariamente ignorados.. A capital da América do Sul é Miami, sem dúvida.. E eis que surge a Copa: 50.000 argentinos num Maracanã lotado. 100.000 hermanos curtindo a noite carioca, bebendo, rindo, dormindo na praia. Com os brasileiros. Poucos incidentes, quase nenhum – e o melhor de tudo: brasileiros no dia seguinte dizendo como mudaram a imagem dos nossos maiores vizinhos. São queridos, amam o Brasil e amam também uma disputa futebolística.
30.000 chilenos no Maracanã cantando o hino fervorosamente. Como ultrapassar isso? Colombianos invadindo Brasília de tudo que é jeito para torcer por sua equipe? Enfim.. Nenhum analista politico e social previu que isso poderia acontecer. E que no fundo essa festa dos estádios poderia de fato ser a festa das nações.
A Copa mostra ao Brasil o que Foz do Iguaçu, por toda sua história agora centenária, sua característica ímpar, de uma cidade localizada em três fronteiras há muito convive com tantos povos e características similares. Cidade onde diariamente argentinos, paraguaios, chineses, árabes, judeus, africanos vivem e trabalham lado a lado. Um caldeirão de raças que jamais pregou a intolerância – pelo contrário – vivem e sobrevivem irmamente.
Amigos, conhecidos e colegas, numa dinâmica urbana que desconhece preconceito de raça, credo, sexo e origem. Só quem viveu, nasceu ou vive lá sabe o que isso significa. Uma cidade forjada na mistura de tantas comunidades. Com seus problemas evidente, mas poucos de natureza de relações entre diferentes que na prática, carregam aquilo que nos une: o DNA humano.
Se a Copa do Mundo, de tantos erros e acertos, de tantos desencontros, desvios e desconexões, servir para o povo brasileiro descobrir o que o iguassuense já sabia, terá valido a pena. O grande legado da Copa não será feito de concreto, sapata ou argamassa. Será feito de gente. Internacional e latino-americana. Chegou a hora do Brasil aprender um pouco com Foz do Iguaçu.
(*) Francisco Alpendre é advogado em Foz do Iguaçu e escreve sobre Gestão Pública semanalmente no Boca Maldita.
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