Sim, somos uma nação que naturalizou as desigualdades.
Essa é uma questão que há tempos me intriga, pois me parece óbvio que, para além do sentido de justiça e humanidade, desigualdade em excesso corrói o tecido social, a coesão entre indivíduos e espaço público, abre frentes para o crime organizado, compromete o crescimento sustentável e o futuro do país.
Todos os dias, somos bombardeados por dados, estudos e pesquisas que apontam para as diversas facetas das nossas enormes iniquidades: renda, educação, saúde, saneamento, segurança, moradia.
Em estudos e rankings internacionais, nosso posicionamento é sempre entre os últimos países, mesmo dentro do continente latino-americano. Estamos também entre os países com mais baixo nível de confiança nas pessoas e instituições, o que pode ser interpretado como uma consequência das desigualdades em excesso.
Para contornar essa situação, a opção das elites econômicas, políticas, intelectuais, artísticas e esportivas é assegurar os serviços privados básicos para nosso bem estar e, muitas vezes, morar encastelados em condomínios fechados.
Cenário que, como descreve o psicanalista Christian Dunker, nos aprisiona e fortalece o medo do desconhecido, tornando aquele que é diferente uma ameaça constante.
A valorização do indivíduo e a convivência exclusiva entre iguais têm acarretado o aumento da intolerância e dos preconceitos, amplamente difundidos nas redes sociais.
Diversos estudiosos têm apontado para o passado escravagista e patrimonialista como marcas ainda persistentes das nossas desigualdades.
Nesse sentido, somos ainda um país que valoriza em demasia as aparências, gosta das hierarquias e sempre consegue um jeitinho de fazer leis com diversas exceções e privilégios para grupos de interesse.
O antropólogo Roberto da Matta destaca que a igualdade é vivida como uma ofensa o Brasil, pois o anonimato associado à cidadania nos perturba; não queremos ser igual a todo mundo.
Embora nossa busca por mais equidade tenha começado tarde, é inegável que tivemos grandes avanços nos últimos 20 anos, com a expansão do acesso à educação, o aumento do salário mínimo, a implementação de programas de distribuição de renda, dentre outros.
Ao lado das políticas públicas, o avanço das tecnologias tornou possível o reconhecimento de inúmeras vozes antes excluídas do debate, especialmente entre os jovens que formaram coletivos e movimentos, em luta por microrrevoluções.
A grita geral na defesa da Amazônia ou os enfrentamentos das mulheres às questões da violência parecem ser sinais dessa insatisfação e da potência de grupos que querem ser ouvidos e não aceitam viver em um estado de paralisia até as eleições de 2018.
Diante de todo esse cenário, o que fazer?
A tessitura de vínculos de confiança que tornem possível a construção de diálogos e pontes entre os diferentes grupos que ocupam os mais diversos lugares na sociedade, cenário fundamental para a saída da crise, exigirá que nós, pertencentes às diferentes elites, possamos escutar, reconhecer o outro como igual no debate e construir, juntos, novas bases de diálogo.
O avanço no enfrentamento das desigualdades exigirá não apenas uma reflexão frente a nosso posicionamento como cidadãos, mas também o amadurecimento de questões centrais na sociedade contemporânea hoje, como a tributação progressiva, a universalização dos direitos para além da criação de políticas universais e a adoção da equidade e sustentabilidade como foco de todas as políticas.
Para que essa agenda possa disputar espaço nas próximas eleições, é preciso começarmos a nos organizar já, de modo que as conversas com familiares e amigos ou os debates em instituições e movimentos avancem para além do pessimismo e da desesperança, na direção de propostas concretas e elaboradas com a participação de diferentes grupos e setores da sociedade.
Maria Alice Setubal, a Neca, é socióloga e educadora. Doutora em psicologia da educação, preside os conselhos da Fundação Tide Setubal e do GIFE. Fundadora e membro do conselho do Cenpec. Pesquisa educação, desigualdades e territórios vulneráveis
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