Mauri König, na Folha de S.Paulo
Refugiados e migrantes em fuga da guerra e da fome na Ásia, na África e no Oriente Médio estão se organizando em enclaves multiétnicos que começam a redefinir a cultura, a economia e a demografia em pequenas cidades do interior do Paraná. A contínua chegada de muçulmanos para trabalhar no abate halal tem propagado os locais sagrados para o islã no Estado.
Treze cidades paranaenses têm mesquitas e nove dispõem de mussalas (espécie de capela). Metade foi aberta nos últimos cinco anos, fenômeno impulsionado pela diáspora oriunda de 18 países. Em geral, são pessoas impedidas de entrar na Europa que veem no Brasil uma alternativa.
A maioria entra no país com pedido de refúgio, nem sempre reconhecido pelo governo brasileiro por falta de comprovação de que a saída do país de origem se deu por perseguição política, étnica, religiosa ou conflito armado. Mas, como têm emprego e endereço fixo, vão tendo o visto de permanência renovado.
Norteado pelo abate halal, esse novo fluxo migratório deu ares cosmopolitas a cidades de vocação rural. A degola de frangos exportados para países islâmicos só pode ser feita por muçulmanos, e empresas especializadas os recrutam ainda em São Paulo ou Brasília, por onde eles costumam entrar no país.
O salário médio é de R$ 1.100 por mês. A maioria trabalha para mandar dinheiro para os parentes no país de origem, mas a alta do dólar reduziu essas remessas ao mínimo. Quase todos vivem em casas ou alojamentos cedidos pelas empresas contratantes.
Com trajes típicos, esses estrangeiros estão se incorporando à paisagem urbana, embora a interação social com os moradores mais antigos se restrinja a espaços públicos ou ao comércio.
Isso acontece mesmo em cidades como Marechal Cândido Rondon, onde há 190 deles, de dez nacionalidades.
RECEPTIVIDADE
O contato com os moradores acontece ocasionalmente. Mas nunca houve nessas cidades do Paraná episódios de xenofobia ou preconceito. Há até muita receptividade.
“Quando há dificuldade para comprar algo, as pessoas ajudam”, diz Muhammad Imran, supervisor do abate halal na Copagril em Marechal Cândido Rondon.
Há dez anos, os muçulmanos dessa cidade, no oeste do Paraná, resumiam-se a filhos dos poucos desembarcados nos anos 60. Agora, a cidade, onde 80% dos 47 mil habitantes têm ascendência alemã, recebe gente de Síria, territórios palestinos, Bangladesh, Líbano, Senegal, Egito, Gâmbia, Serra Leoa, Guiné-Bissau e Paquistão.
Uma mesquita foi aberta em 2014 para atender à comunidade islâmica. A sala alugada é modesta, mas acolhe quem trabalha no abate halal no frigorífico da Copagril.
Entre eles está Mohammad Arabi Sheiban, 27, cuja família se dispersou por quatro países após o início da guerra civil na Síria, em 2011.
Sheiban é um dos 2.077 sírios a quem o Brasil concedeu asilo desde então, conforme dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), ligado ao Ministério da Justiça. Os sírios já representam 25% dos refugiados no Brasil.
Nesse grupo estão ainda o irmão de 17 anos de Sheiban, que chegou de Damasco há seis meses, e Mohammad al- Nader, que vive na cidade de Francisco Beltrão, no sudoeste do Paraná, com a mulher, Duaa, e o filho, Mammun, 2.
Mohammad era comerciante de frutas em Quneitra, até o regime do ditador Bashar al-Assad começar a perseguir seus opositores na cidade. A mãe sofreu um aborto na prisão; dois tios, um irmão e o sogro acabaram presos de forma arbitrária; um cunhado, dois primos e outro irmão morreram na cadeia. Ele temia ser o próximo.
Em Francisco Beltrão, Mohammad deu sorte de morar ao lado da agente educacional Zineide Francisco Vieira Vedois, 48, que “adotou” Duaa como filha. “Eles não tinham nada, só um colchão e a roupa do corpo”, diz. Com uma vaquinha entre amigos, ela conseguiu comprar comida e mobiliar a casa deles.
Hoje, Zineide não passa uma semana sem visitá-los para ver se precisam de algo.
Em Francisco Beltrão, de 85 mil habitantes, a mesquita foi inaugurada em março de 2014. A comunidade islâmica é formada por 80 pessoas, a maioria empregada no frigorífico da Sadia, caso de Mohammad. São oriundos ainda de Bangladesh, Paquistão, Marrocos e Somália. Também há alguns árabes e brasileiros convertidos ao islã.
Também no sudoeste do Estado, a cidade de Dois Vizinhos tem uma comunidade de 150 pessoas vindas de Síria, Iraque, Jordânia, Líbano, Guiné-Bissau, Senegal, Angola, Sudão, Moçambique, Paquistão, Afeganistão e territórios palestinos e da Caxemira.
Emancipada há 54 anos, a cidade já tinha raízes cosmopolitas. Primeiro chegaram os gaúchos de ascendência italiana, depois os alemães de Santa Catarina, os poloneses das colônias mais ao sul e os japoneses do norte do Estado. Juntos, fizeram da cidade de 36 mil habitantes uma campeã na produção de frangos.
A alta nas vendas para o Oriente Médio nos anos 80 levou a Sadia a adaptar a planta local para atender aos países islâmicos. E o fenômeno migratório foi se dando na intensidade das exportações.
Pessoas de 13 nacionalidades se incorporaram nos últimos dez anos aos muitos sotaques que deram à cidade o título de capital nacional do frango, com o abate de 574 mil aves por dia, líder na América Latina. Há, ainda, 15 brasileiros convertidos ao islã. A maioria trabalha no abate halal no frigorífico da Sadia, onde há uma mussala.
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