por Fábio Campana
Ando preocupado com o meu enterro. Desisti da cremação depois de presenciar uma cerimônia que em vez de homenagear o morto foi uma exaltação ao mau gosto. Horrível. Dos efeitos especiais, com direito a aparição do ataúde sob uma chuva de pétalas de rosa, à prédica de um idiota que desfiou lugares comuns que me recuso a repetir.
Uma ponta de orgulho e soberba me faz pensar que mereço pompas fúnebres. Temo aquele velório vazio, sem lamentações, sem choro nem vela. Seria um vexame. Funeral de terceira classe, nunca.
Quero lágrimas, mesmo que sejam de crocodilo. Se verdadeiras não mereço, exijo carpideiras contratadas para lamentar aos gritos a minha partida. E que não falte a mulher de preto, meias de pura seda, salto 18, que ameaça jogar-se na cova, a repetir este mantra até a última pá de cal.
— Deixem-me partir com ele. Eu não quero ficar só neste mundo e sem ele não serei ninguém.
Peço que preparem meu cadáver com esmero. Limpo. Cabelo, barba, unhas e sobrancelhas aparados. Depilem o nariz e as orelhas. Não há nada mais ridículo que um cadáver com pelos saindo pelas narinas. Não economizem. Quero partir com a melhor roupa, a gravata mais bonita e os sapatos brilhando.
O fundo musical deve ser o réquiem de Brahms e o que mais o Dico Kremer sugerir. A Nona de Mahler, talvez. Discurso à beira do túmulo só se for feito pelo Figueiredo Basto, com a ênfase que ele usa no júri. Não creio na ressurreição da carne.
Mas peço missa e toda a liturgia católica. Vejam bem, a liturgia tridentina. Orações antigas, solenes, nunca ditas em linguagem vulgar como se usa agora.
Pois, pois, ainda não tenho nem mesmo epitáfio. Pensei em alguns, não gostei. Humor? Não sou humorista, jamais poderia ter um como o de Grouxo Marx: “Perdoem-me por não me levantar.”
Gostaria de algo em latim. Nada de honrarias. Falsa modéstia sempre fica bem, mesmo para os mortos.
Pensei em algo ao estilo do cardeal Barberini, que deixou esta frase para a sua lápide: “Hic jacet pulvis, cinis e nihil”. Traduzido pelo professor Aroldo Murá, “Aqui jaz pó, cinzas e nada”.
Murá anotou o erro de concordância. O certo seria “Hic jacent pulvis”. Mas esse é apenas mais um cometimento do cardeal Antônio Barberini, capuchinho e irmão do papa Urbano VIII. Deles se dizia em Roma: o que os bárbaros não fizeram, fizeram os Barberini.
Vamos pensar. Não há pressa. Os inimigos e falsos amigos não devem alegrar- se, pois ainda pretendo ficar por aqui por muito tempo e talvez obtenha a graça de vê-los desaparecer, como acontecerá com todos nós, mortais, que um dia seremos apenas pó, cinza e nada mais.
*texto publicado na Revista Ideias 131
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