A propaganda eleitoral gratuita já é, em si, uma aberração, em vários sentidos – salta à vista, logo de cara, que de gratuita ela não tem nada, posto que é financiada por todos os contribuintes por meio de renúncia fiscal
A propaganda eleitoral gratuita já é, em si, uma aberração, em vários sentidos – salta à vista, logo de cara, que de gratuita ela não tem nada, posto que é financiada por todos os contribuintes por meio de renúncia fiscal. Mas nada é tão absurdo que não possa piorar, graças à destreza dos partidos em explorar brechas da legislação e a incerteza causada pelo comportamento errático do Judiciário quando o assunto é eleição.
Agora, conforme noticiou o Estado, dois partidos, o Podemos e o Partido Progressista (PP), deflagraram uma ofensiva jurídica para modificar a distribuição do tempo destinado a cada legenda no horário eleitoral veiculado no rádio e na TV. A intenção é fazer com que a referência para estabelecer o quanto cabe a cada partido seja a quantidade de deputados amealhados por meio do famigerado troca-troca partidário, e não a bancada democraticamente eleita em 2014.
A regra atual estabelece como critério para o tempo de TV o tamanho da representação partidária fixado pela vontade do eleitor, isto é, pela quantidade de eleitos de cada legenda na última votação. O espírito dessa norma é óbvio: trata-se de respeitar minimamente a representatividade eleitoral de cada partido, e a única forma de fazer isso é tomar como base o voto na urna.
No entanto, a vocação do Parlamento nacional para o casuísmo parece irresistível. Incapazes de promover uma abrangente e necessária reforma política, a fim de conferir ao voto dos eleitores o peso que lhe é devido, os deputados e senadores mostram-se extremamente ágeis e competentes quando se trata de aprovar mudanças na legislação que favoreçam seus conchavos.
Uma dessas mudanças foi o estabelecimento da chamada “janela partidária”, por meio de emenda constitucional aprovada em 2016. Esse procedimento permite que detentores de mandato eletivo proporcional (deputados e vereadores) possam, em caráter “excepcional e em período determinado”, mudar de partido sem o risco de perder o cargo, desde que o façam dentro do período previamente estabelecido no calendário eleitoral – neste ano, esse período se estendeu de março a abril.
A emenda aprovada em 2016, no entanto, não permitia que a troca partidária interferisse na distribuição dos recursos do Fundo Partidário nem no acesso ao tempo de propaganda eleitoral. É justamente esse aspecto que o Podemos e o PP pretendem modificar, por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentada no Supremo Tribunal Federal e de uma consulta ao Tribunal Superior Eleitoral. E a razão disso é prosaica: esses dois partidos estão entre os que mais lucraram com as duas “janelas partidárias”, a de 2016 e a deste ano. Portanto, ambos teriam muito mais tempo de TV e maior participação tanto no novo fundo destinado a financiar as campanhas eleitorais como no já conhecido Fundo Partidário.
Diante dessa ofensiva, o mínimo que se pode esperar é que o Judiciário se posicione clara e prontamente contra mais essa tentativa de substituir a representação eleitoral legítima pela esperteza mais rasteira. Trata-se de evitar que, mais uma vez, a mancomunação de bastidores no Congresso se sobreponha ao manifestado nas urnas.
Parte da sem-cerimônia desses oportunistas deriva da crônica bagunça nas regras eleitorais, gerada por decisões judiciais ambíguas e voluntaristas, que, no mais das vezes, estimulam a contestação e a interpretação criativa. Não seria surpreendente, portanto, que o pleito do PP e do Podemos seja bem-sucedido.
Se isso acontecer, esses partidos, e outros tantos com o mesmo perfil, terão ainda mais poder para barganhar seu apoio na eleição deste ano. Terão, à sua disposição, recursos e tempo de TV para oferecer a partidos maiores em troca de sabe-se lá que benefícios no futuro governo. Assim, tanto a propaganda eleitoral gratuita como os fundos partidário e eleitoral não existem para viabilizar esses partidos, permitindo que suas propostas – se é que existem – sejam ouvidas pelos eleitores, e sim para servir como moeda no mercadão do Congresso.
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