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Acordo de livre comércio Brasil-Chile: o que esperar do pacto bilateral sem presença do Mercosul?

No dia 30 de junho, a Câmara dos Deputados aprovou acordo de livre comércio entre Brasil e Chile no âmbito do Mercosul.

Assinado em 2018, o texto trata de diversos pontos adicionais ao acordo tarifário assinado em 2015, estabelecendo compromissos como facilitação de comércio, (facilitação de) barreiras técnicas ao comércio, comércio transfronteiriço de serviços, investimentos, comércio eletrônico e compras governamentais.

Segundo o deputado Aluisio Mendes (PSC-MA), relator que deu parecer favorável à aprovação, com o acordo, os dois países “estarão aptos a ampliar benefícios”.

“Desde 2014, existe tarifa zero para todo o comércio bilateral e, com o acordo, Brasil e Chile estarão aptos a ampliar os benefícios, permitindo um impulso adicional ao comércio e investimentos por meio de questões não tarifárias que são, em vários pontos, mais ambiciosas que o padrão estabelecido pela Organização Mundial do Comércio”, disse o deputado citado pela agência de notícias da Câmara dos Deputados.

Até hoje, apenas o Chile reconheceu o acordo de 2018, que precisa da ratificação de todos os membros do Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai). Quanto ao Brasil, após passar pela Câmara dos Deputados, o texto seguirá para o Senado na forma do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 288/21.

Quanto ao Brasil, após passar pela Câmara, o texto seguirá para o Senado na forma do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 288/21.

Para saber sobre a importância econômica desse acordo, os principais entraves à aprovação deste pacto do ponto de vista do Brasil e se os demais países do Mercosul têm reservas quanto à aprovação, a Sputnik Brasil conversou com André Leite Araujo, doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Bolonha, Itália.

Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, à esquerda, e o presidente do Chile, Sebastián Piñera, chegam ao Palácio da Alvorada em Brasília, Brasil, antes da pandemia, em 2019

Araujo conta que o acordo não é apenas um pacto de comércio bilateral entre Brasil e Chile, mas também um acordo que se integra ao protocolo opcional de complementação econômica Mercosul-Chile.

Na criação do bloco, em 1991, os quatro países-membros começam a criar novos acordos para regulamentação tarifária com outros membros da ALADI (Associação Latino-Americana de Integração), e o Chile é um desses países.

Entretanto, para o doutorando, o acordo foi uma inovação nas políticas vigentes, pois o Mercosul inicialmente não prevê acordos bilaterais entre um dos seus países-membros e outro Estado à parte, portanto, o pacto chama atenção por ser bilateral entre os dois países, mas sem abarcar os outros Estados-membros do bloco.

“Não é a primeira vez que um tipo de acordo como esse acontece, mesmo a Argentina já tem um acordo específico com o Chile […], mas há um destaque neste pois não é um pacto relacionado apenas a tarifas de mercadorias […] ele também vai focar em questões não tarifárias novas como comércio eletrônico, transferências de dados pessoais, meio ambiente, igualdade de gênero e roaming internacional”, contou o especialista.

Entraves para ratificação do acordo

Apesar de ter sido aprovado, Araujo diz que o texto-base não recebeu total apoio na Câmara por parte dos partidos, e que se configurou uma clara divisão entre partidos da direita, que apoiou sua aprovação, e da esquerda, como PSOL, PT, PDT e PC do B, que foram contra.

O doutorando explica que existe uma preocupação em torno desses pactos porque historicamente acordos de livre comércio abrem um grande debate relativo ao real benefício que eles podem trazer para as economias nacionais, e dentro do Brasil também há essa discussão, o que teria sido evidenciado na votação na Câmara.

Uma outra oposição também veio das centrais sindicais pela forma como o pacto foi efetuado, pois sua aprovação aconteceu em caráter de urgência na Câmara e de forma virtual, por conta da pandemia, mas acredita-se que o ideal era terem acontecido audiências públicas com parlamentares de ambos os países para se chegar a uma melhor definição.

Há também uma preocupação se os direitos trabalhistas brasileiros vão ser afetados na questão de compras públicas e se as novas medidas podem gerar uma competição desleal entre o comércio das duas nações.

Além dos entraves citados, Araujo diz que é preciso questionar o quanto que a opinião pública apoia essa integração, pois existe uma divisão na população entre quem pensa que o Brasil deveria agir em conjunto ao Mercosul ou agir “separadamente”.

“Há preferencias políticas dos governos, dos congressistas, há interesses privados do setor econômico, mas até que ponto a população quer que o acordo seja feito em conjunto ao Mercosul ou quer que seja um acordo direto entre Brasil e qualquer outro país?”, indagou o especialista.

Líderes de países do Mercosul posam na última cúpula realizada em Santa Fé, Argentina, em 17 de julho de 2019, antes da pandemia. O primeiro à esquerda é Sebastián Piñera, presidente do Chile. O país sempre está presente nos eventos do bloco.

Política econômica chilena

Ao mesmo tempo, Araujo pontua que o texto, criado em 2018, durante o mandato do ex-presidente Michel Temer, e agora aprovado durante o governo de Jair Bolsonaro, avança nessas duas gestões pois flerta diretamente com o seguimento econômico proposto por esses dois governos, que consiste em políticas de livre comércio e liberalização da economia, e por sua vez, o Chile segue a mesma linha de pensamento.

“O Chile, a partir da década de 1970 com a ditadura do Pinochet, se afastou de mecanismos de integração regional como a Comunidade Andina e o Mercosul, e optou por relacionamentos bilaterais, então é um dos países que mais tem acordos de livre comércio […] e a partir de 2012 Santiago encontrou um eco na região ao criar a Aliança do Pacífico com Peru, Colômbia e México”, explicou o especialista.

Segundo Araujo, esses países da comunidade também aderiram um pouco à diretriz chilena de não criar uma institucionalidade regional tão forte, mas sim de abrir a economia para o mundo e “especificamente para região da Ásia”.

A ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet, na Cúpula do Mercosul de 2015, em Luque, Paraguai (foto de arquivo)

Acordo pode fortalecer Mercosul?

Na interpretação do especialista, o acordo pode deixar a coesão do Mercosul mais fragilizada porque podem surgir questões práticas em relação a tarifas.

“Se você for da tarifa externa comum e começa a permitir que um produto seja tarifado de um modo no Brasil e de outro modo no Uruguai, como vai ser o comércio desse produto entre os dois países? Vai criar uma nova tarifa? Isso é justamente contrário à ideia de ter uma livre circulação de bens e pessoas dentro do Mercosul”, indagou Araujo.

Araujo conta que nos anos 2000, conforme os EUA começaram a tratar acordos de livre comércio com a América Latina, o Mercosul reagiu e criou a decisão Nº 32/00 que não permite acordos bilaterais de livre comércio, na qual negociações sempre têm que ser efetuadas em conjunto.

No entanto, há uma variação nessa dinâmica com a eleição de novos governos e a política externa escolhida pelos mesmos, mas em geral, países menores, como Paraguai e Uruguai, colocam em debate essa flexibilização de acordos bilaterais, uma vez que se cria a dúvida se essas economias menores, “conseguiriam tratados bilaterais sem o poder de barganha que o Mercosul oferece em conjunto ao Brasil e Argentina”, segundo Araujo.

“O Brasil tem mais chance de barganha por sua dimensão, mas quando a gente olha para o Uruguai, ou uma economia mais fragilizada como o Paraguai, isso poderia não se concretizar [acordos bilaterais]. Inclusive, o Paraguai é beneficiado nas negociações conjuntas do Mercosul porque foi decidido pelo bloco ele ter algum tipo de benefício dada a situação socioeconômica do país […] então é um ganho sim negociar conjuntamente” disse o especialista.

Porém, apesar da noção de que “um ganho” proveniente de negociações através do bloco pode ser maior do que o oriundo de acordos bilaterais, Araujo aponta que cada vez mais a política liberal, que visa esses acordos, está em voga na América Latina, “com exceção da Argentina, [os governos] tendem a olhar mais para o modelo bilateral, liberal, na ideia de que o Mercosul seria uma amarra ao desenvolvimento nacional de cada país”.

No Brasil, um bom exemplo desse atual olhar dos governos em relação ao bloco foi a posição do ministro da Economia, Paulo Guedes, quando no começo de junho ao discursar para investidores estrangeiros disse que o bloco foi uma “armadilha” para o país e que “ficar fechado [no Mercosul] foi muito prejudicial para o Brasil nos últimos 30 anos, isso impediu o país de se envolver em uma integração produtiva mais eficiente, de se integrar em cadeias globais”.

Motorhome decorado com uma bandeira chilena e um pôster da Copa do Mundo com uma foto do Cristo Redentor no Rio de Janeiro, Brasil (foto de arquivo)

Bolívia e Venezuela

Em relação à expansão do Mercosul com Venezuela e Bolívia, Araujo conta que a Venezuela foi suspensa duas vezes, em 2016 e 2017, a primeira pelo descumprimento do protocolo de adesão que deveria internalizar algumas regras que não foram internalizadas a tempo, e na segunda vez pelo descumprimento da cláusula democrática.

No entendimento do especialista, pelo fato de Caracas ter sido suspensa duas vezes, pode ser que quando voltarem às discussões “possa talvez suspender uma vez e não outra, e fazer uma certa negociação com o governo que suceda o atual de Nicolás Maduro”.

Sobre a Bolívia, o país começou a aderir ao Mercosul em 2012 e todos os países já aprovaram, inclusive a Venezuela antes de ser suspensa, com exceção do Brasil. “O protocolo já foi aprovado pelas comissões na Câmara e esta aguardando ser votado no Plenário para depois ser encaminhado para o Senado, com isso já são nove anos aguardando o processo e não há perspectivas atuais que avance.”

“O posicionamento do atual governo brasileiro era esperar as eleições bolivianas para decidir se o país seria classificado como país democrático ou não no entendimento do governo Bolsonaro. Houve as eleições, mas nada avançou”, contou Araujo.

Com isso, a Bolívia não tem todos os direitos como um Estado parte do Mercosul, “ela tem voz para participar, mas não pode assinar o acordo junto”.

O então presidente da Bolívia, Evo Morales, acena ao lado do presidente da Argentina, Mauricio Macri, na 62ª Cúpula do Mercosul em Santa Fé, Argentina (foto de arquivo)

Futuro do Mercosul

Mesmo com a defesa de políticas econômicas mais liberais por alguns governos na América do Sul, Araujo vê com otimismo o futuro do bloco a longo prazo, apesar das divergências internas que acontecem agora.

“O Mercosul já passou várias crises, todo ano alguém diz que é o fim do bloco, a cada eleição um candidato fala que vai sair do bloco, mas até hoje todos os países continuam, todas as crises foram ultrapassadas e continuamos a avançar em uma direção ou outra ainda que haja diferentes agendas”, explicou o especialista.

Araujo diz que, de fato, houve retrocessos, por exemplo o Parlamento do Mercosul que nos últimos anos perdeu as eleições diretas e foi decidido “voltar atrás com todo processo”, mas ainda assim o Parlamento continua a existir, com parlamentares eleitos indiretamente, mas que estão presentes.

Estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, é iluminada com as cores da bandeira dos EUA com a palavra “hope” que significa “esperança” em inglês durante a pandemia do coronavírus, 12 de abril de 2020

Adicionalmente, o especialista também considera que esses grandes acordos que ganham destaque na mídia, seja o acordo Brasil-Chile ou Mercosul-União Europeia, ajudam a reforçar a ideia da identidade cultural dos brasileiros como membros do Mercosul e como latino-americanos. No caso, essas negociações colaborariam na construção de uma “identidade mercosulina”.