Passo a passo, o legado chavista vai destruindo a Venezuela. Em vez de agir no sentido da reconciliação da sociedade, Nicolás Maduro, o sucessor de Hugo Chávez, parece querer dividi-la ainda mais.
A realidade cotidiana do país é o desabastecimento generalizado e a miséria. Dias atrás os jornais estamparam uma foto de venezuelanos disputando restos de comida com urubus num aterro sanitário de Boa Vista (Roraima). A alucinação de Maduro é de tal ordem que a hipótese de uma guerra civil não pode ser descartada. Informações divulgadas na semana passada dão conta de que ele estaria disposto a recrutar e armar 1 milhão de milicianos para “defender a soberania nacional”.
Chefetes fascistas como o atual presidente venezuelano são, em geral, adeptos do blefe como tática política; admitindo, porém, que ele mobilize 300 mil ou 400 mil, as consequências funestas de sua opção logo se evidenciariam. Cumprir tal ameaça seria um passo irreversível no sentido de uma ditadura totalitária, com a supressão do que lá ainda resta de liberdade, instituições e direitos humanos. Num abrir e fechar de olhos, o chavo-madurismo se firmaria entre os piores exemplos de tirania na América Latina; e nem estável seria, pois dificilmente conseguiria desarmar a horda pretoriana que terá criado.
Por mais trágica que seja, poucas vezes a História latino-americana se configurou tão claramente como uma luta entre o mal e o bem, ou entre o mal como realidade e o bem como uma tênue esperança de reconstrução. Nós, brasileiros, tivemos de aguardar 13 anos e meio para nos livrarmos do vergonhoso apoio oficial ao chavismo. A famigerada política externa de Lula e Dilma Rousseff primou pela mais absoluta obtusidade, fruto de sua ideologia terceiro-mundista, de sua ignorância e – por que não dizê-lo? – de sua manifesta covardia.
Um exemplo egrégio do que acabo de dizer foi o que Lula e sua comitiva nos deram em Cuba no dia 24 de fevereiro de 2010. A cena está no YouTube, caso alguém a queira apreciar visualmente. Ao desembarcar em Havana, nosso então presidente tomou conhecimento da morte de um pobre-diabo chamado Orlando Zapata Tamayo, um encanador, preso como dissidente de consciência. Zapata morreu em sua cela após 85 dias em greve de fome. Claro, Lula, a primeira coisa que fez ao encontrar os irmãos Castro, foi pedir esclarecimentos e manifestar seu desejo de se avistar com dois ou três presos, certo?
Errado. O que o vídeo no YouTube nos mostra é um Lula subserviente, gaguejando palavras sem nexo e, naturalmente, culpando o miserável Tamayo pelo acontecido. Isso, é bom lembrar, num período em que o governo brasileiro prodigalizava apoio financeiro à ditadura cubana para a construção do porto de Mariel.
Ora, Lula é o líder inconteste da esquerda brasileira. A maioria dos políticos, clérigos e intelectuais que se autointitulam “de esquerda” se dedica diuturnamente a cultuar sua personalidade. Voltemos, pois, à Venezuela.
Ao evocar o que há anos se vem passando naquele país, é inevitável que nos vejamos como testemunhas da atitude das esquerdas brasileiras. Estas, com as exceções de praxe, notabilizam-se, como diria Nelson Rodrigues, por um silêncio “de estourar os tímpanos”. Não defendem os direitos humanos como conceito universal, e sim os direitos humanos de uma determinada faixa ideológica.
Quem quiser compreender tal atitude deve começar pelo antiamericanismo. Para o esquerdista brasileiro (ou para o latino-americano, em geral), ser indiscriminadamente contra os Estados Unidos é a credencial sine qua non de quem luta pelo progresso social e pelo bem da humanidade. O corolário desse posicionamento é que qualquer regime antiamericano é bom. Cuba é excelente; a teocracia iraniana é excelente; o chavo-madurismo pode não ser excelente, mas não é o caso de criticá-lo. É, no mínimo, um aliado em “nossa” luta contra o imperialismo.
Mas o antiamericanismo é somente a ponta emersa de um vasto iceberg. A parte submersa, em geral estruturada em torno da vulgata marxista, é a missão que as esquerdas se arrogam de conduzir a humanidade a algum paraíso terreno. Toda esquerda julga conhecer de antemão o caminho que leva a tal paraíso. Acredita deter de forma exclusiva o conhecimento e o know-how político necessários para a eliminação da pobreza e das desigualdades sociais, para a construção de um mundo transparente, sem trapaças nem corrupção, e para a implantação definitiva da fraternidade e da paz. A realização desse supremo bem terreno é um dever do qual não se pode abrir mão. No limite, quem se vê dessa maneira não pode coerentemente aceitar o conceito da alternância no poder, pilar inarredável da democracia.
Sim, o meu argumento requer pelo menos duas ressalvas. Primeiro, só uma pequena parcela da esquerda se mantém fiel ao marxismo intelectualizado dos velhos partidos comunistas. O PT, por exemplo, é apoiado por milhares de estudantes, intelectuais e padres que nada leram de Marx. O que os caracteriza é um vago sentimento de justiça. Um anseio francamente utópico de solidariedade social. Uma rejeição da modernidade, a ser substituída por uma espécie de cristianismo das catacumbas. Isso é verdade, mas não altera o meu argumento.
O segundo ponto – e o PT serve outra vez como exemplo – é que a juventude idealista não tem grande influência na ação política. Os atores reais são homens práticos, profissionais e sindicalistas que não servem a ideias, apenas se servem delas. Outra verdade, muito bem ilustrada, aliás, pelo passado brasileiro recente.
*Bolívar Lanounier é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro das academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciência e autor do livro “Liberais e Antiliberais: a Luta Ideológico de Nosso Tempo” (Companhias das Letras, 2016)
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