É um golpe fortíssimo – fortíssimo – contra a Lava Jato a esperada decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal de soltar José Dirceu, o segundo homem na cadeia de comando da organização criminosa que estabeleceu, durante uma década no poder, o maior esquema de corrupção já comprovado no mundo. Hoje foi Dirceu. Na semana passada, fora, além do amigo de Lula e lobista José Carlos Bumlai, o operador do PP João Cláudio Genu – outro que, como o petista, recebia propinas do petrolão enquanto era julgado no próprio Supremo por sua participação no mensalão. Amanhã, quem será? Afinal, se um réu que, comprovadamente, delinquia enquanto era julgado no Supremo, e prosseguiu delinquindo após ser condenado pelo maior tribunal da República, pode ser solto pela mesma Suprema Corte, quem não pode? As informações são de Diego Escosteguy na Época. Dirceu, como Genu e outros integrantes da organização criminosa do petrolão e do mensalão, só parou de delinquir ao ser preso. É para casos como esses, entre outros, que existe o instituto da prisão preventiva, aplicado em situações extremamente graves e pontuais. Ou existia, ao menos em relação aos crimes de colarinho-branco, normalmente cometidos por poderosos: as decisões recentes da Segunda Turma do Supremo começam a reverter um entendimento jurídico construído no decorrer dos últimos três anos, nos tribunais superiores, inclusive no próprio Supremo, em função do complexo esquema desvendado pela Lava Jato.
Há uma fila de gente importante em Curitiba – de Eduardo Cunha a Antonio Palocci, passando por João Vaccari – que vai pegar senha no guichê da nova Segunda Turma do Supremo, aquela que cuida dos casos da Lava Jato. Com a entrada do ministro Ricardo Lewandowski na Turma, formou-se uma forte trinca que passou a julgar usualmente contra a Lava Jato – Dias Toffoli e Gilmar Mendes a completam. O relator da Lava Jato, ministro Edson Fachin, e o decano do Supremo, ministro Celso de Mello, estão definitivamente em minoria.
As consequências para a Lava Jato, e para o combate à impunidade no Brasil, podem ser devastadoras. Podem ser soltos, pelo STF, quase todos os agentes da organização criminosa que criou um esquema de macrocorrupção sem precedentes no Brasil. Podem ser soltos políticos corruptos – do PT, do PP, do PMDB. Podem ser soltos empresários poderosos. Podem ser soltos doleiros, laranjas e operadores. Pode ser solta boa parte daqueles que ocupavam cargos de comando na organização criminosa.
Em conversas reservadas, os homens de frente da Lava Jato admitem abatimento e frustração. Já esperavam a decisão desta terça-feira (2). Mas temem pelo futuro da operação – preocupação que se estende das investigações em curso aos processos já em andamento. Palocci, por exemplo, avisou aos procuradores que cogita desistir da delação. Espera ser solto. (A delação de Palocci é a mais temida por petistas, banqueiros, deputados e outros grandes empresários.) A negociação da colaboração dele andou duas ou três casas para trás. Pode ser fechada com ele fora da cadeia.
Mas as decisões da trinca do Supremo criaram, na prática, um ambiente de insegurança jurídica, que abala a Lava Jato. A prisão preventiva é um instrumento essencial – e perfeitamente legal – nas investigações de crimes complexos, em qualquer lugar do mundo. Se essa arma for inutilizada, os investigadores terão sérios limites para apurar devidamente os casos de corrupção – e interrompê-los, quando possível. Os procuradores e delegados, em Brasília, Curitiba e Rio de Janeiro, torcem para que a trinca do Supremo não esvazie ainda mais a operação.
Caso o Supremo siga soltando os principais homens do petrolão, a colisão entre Lava Jato e ministros será inevitável. Terá consequências imprevisíveis e potencialmente graves. Até agora, os investigadores julgavam não ser inteligente estrategicamente apurar casos de corrupção nos tribunais superiores. Houve delatores que ofereceram evidências de crimes no Judiciário brasiliense. Mas a Lava Jato optou por aguardar o desenrolar dos processos; tiros contra os tribunais superiores poderiam inviabilizar o próprio andamento das investigações. Se o Supremo vier a se tornar um obstáculo para as investigações, algo que já é admitido reservadamente por alguns dos responsáveis pela operação, será difícil, para os líderes, segurar o ímpeto de alguns investigadores. A proposta de delação da OAS, por exemplo, prevê casos de corrupção envolvendo ministros de tribunais superiores. Outras delações fortíssimas estão em negociação.
Sob a perspectiva jurídica, a sessão desta terça-feira é uma triste demonstração da resiliência da desigualdade penal no Brasil. A trinca de ministros tem, evidentemente, suas razões jurídicas para votar como votou – consideram as prisões demasiadamente alongadas, algo como uma execução antecipada da pena. Mas a pergunta se impõe: qual seria o voto dos mesmos ministros caso Dirceu, ou mesmo Genu, diante de tal quadro de reiteração delitiva, fossem pobres? Fossem invisíveis? Há precedentes em que os três, em casos indubitavelmente menos graves, optaram por manter presos acusados, réus e condenados. Qual é, afinal, a diferença substantiva dos investigados na Lava Jato para os réus anônimos que lotam os mesmos escaninhos do Supremo, muitos deles integrantes dos 40% de presos provisórios que abarrotam as cadeias brasileiras?
A desigualdade penal no Brasil, uma chaga que vinha sendo remediada aos poucos, especialmente a partir da Lava Jato, resulta em pobres submetidos a todos os rigores da lei – e, amiúde, a rigores que não estão nela nem na Constituição. A mesma desigualdade penal resulta em ricos submetidos a todas as benesses da lei – e, amiúde, às que não estão nela nem na Constituição. Um dos maiores legados da Lava Jato deveria ser a diminuição significativa dessa desigualdade. Ainda pode ser. Mas a sessão desta terça no Supremo subtraiu parte da esperança dos brasileiros de que isso possa acontecer.
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