Editorial, Estadão
Quanto mais o governo alega que não conseguirá ajustar as contas públicas e promover a retomada do crescimento sem as reformas trabalhista e previdenciária, mais as entidades sindicais do funcionalismo público prometem deflagrar greves por tempo indeterminado. Relegando suas divergências para segundo plano, os dirigentes das principais centrais sindicais decidiram adotar essa estratégia para acossar o Executivo e mostrar ao Legislativo as dificuldades que o aguardam na tramitação das eventuais propostas de reformas.
O que estimula as centrais sindicais a patrocinar esse grevismo é a falta de uma lei que regulamente o exercício do direito de greve na administração pública, para evitar que sejam prejudicados os cidadãos que dependem de serviços públicos, como os prestados por hospitais e agências que atendem diretamente a população. A greve dos peritos médicos que foi encerrada no começo do ano, por exemplo, deixou 1,3 milhão de trabalhadores aguardando a perícia do INSS e o recebimento de benefícios.
A Constituição de 1988 inovou ao conceder o direito de greve aos servidores públicos, mas condicionou seu exercício a uma lei complementar que, por omissão do Executivo e do Legislativo, jamais foi aprovada. Nesses 28 anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) pediu várias vezes ao Legislativo que aprovasse essa lei. Entre 1999 e 2015, foram apresentados 8 projetos no Senado e 15 na Câmara. Muitos permanecem engavetados nos escaninhos da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania de cada Casa legislativa, à espera de um relator. Os poucos que receberam parecer favorável tramitam lentamente nas demais comissões técnicas.
Em 1992, o Executivo tentou solucionar o problema por meio de uma gambiarra jurídica. Sob o pretexto de regulamentar o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que trata do direito de greve num de seus artigos, foi baixado um decreto que embutia a regulamentação da greve no setor público. Mas a iniciativa não teve efeito prático. Diante da escalada de greves irresponsáveis do funcionalismo, em 2007 o STF determinou que a lei de greve no setor privado (Lei n.º 7.783/89) deveria servir temporariamente para a Justiça do Trabalho como referência para o julgamento das paralisações no setor público. Essa lei estabelece limites para a suspensão do trabalho em setores estratégicos, mas o efeito da orientação do STF foi quase nulo.
Sem o risco de sofrer sanções, como corte de ponto e desconto dos dias não trabalhados, as categorias do funcionalismo acostumaram-se a fazer greves prolongadas, arrancando do Executivo generosos aumentos e multiplicando os benefícios pecuniários que o atual governo quer reduzir, para equilibrar suas contas. Em seu primeiro mandato, Dilma Rousseff deu sinais de que resistiria às reivindicações abusivas dos servidores, quando mandou o ministro da Justiça recorrer aos tribunais para coibir desmandos cometidos por várias categorias. Mas não foi além disso.
O projeto de regulamentação do direito de greve do funcionalismo que mais conseguiu avançar é de autoria do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP). Ele prevê que os dias parados podem ser descontados e que, durante a greve, as unidades administrativas devem continuar prestando serviços com 30% dos funcionários. Aprovado em 2015 na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, o projeto está na Comissão de Constituição e Justiça aguardando inclusão na pauta de votação.
As lideranças sindicais do funcionalismo jamais hesitaram em paralisar atividades essenciais e fazer da população refém de suas reivindicações porque confiam na impunidade decorrente da falta da lei complementar prevista pela Constituição para a greve no setor público. O abuso só cessará quando o governo se mobilizar para acelerar a tramitação desse projeto. Sem isso, terá dificuldades para resistir às pressões corporativistas que virão por ocasião das reformas previdenciária e trabalhista.
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